Por Meon Em Opinião

Na penitência hipster do slow food

Nem o tempinho dominical mequetrefe de cinza e chuva foi o suficiente para frear o ímpeto da população de abarrotar aquele novo estabelecimento de inclinação hipster em plena primavera esclerosada pelo mau tempo. Por volta das 17h era preciso paciência para encontrar vazia uma das mesas de madeira reflorestada que espalham-se pelo finório ambiente.

À porta, uma distinta plaquinha nos avisava que, ali, nossos bichinhos são bem-vindos. Logo abaixo dela, a panelinha, mesmo que momentaneamente sem ração, corroborava a sentença. Bem-vindos ou não, cães e gatos talvez despertassem mais interesse dos garçons do que aquele grupo de incautos homo sapiens – do qual eu, ainda de bom grado, fazia parte – plantados ali há alguns minutos sem orientação.

Tempo para botar um reparo na decoração interna. Elementos rústicos engenhosamente distribuídos e soluções criativas aqui e ali pareciam um esforço arquitetônico para desviar o foco do indiferente atendimento. Pois se o ambiente esforça-se para emular uma fraternal casa de vó, o acolhimento, só para nos mantermos no âmbito familiar, parece obra do cunhadão.

Estávamos em cinco e, finalmente, conseguimos uma mesinha para quatro. Quando, minutos depois, o garçom hipster resolveu dar o ar da insossa graça para limpar os restos da turma anterior, sua insípida expressão de calcinha bege puída foi subitamente abalada quando lhe pedi que nos trouxesse mais uma cadeira.

“Então, quando você for tomar café mais ou menos por essa hora, o ideal é que vocês liguem com antecedência para reservar seus lugares”, me disse em tom professoral. Elementar, meu caro hipster, afinal, quem cometeria a insanidade deselegantérrima de sair para um cafezinho sem hora marcada? Engoli ali, sem café mesmo, os palavrões e maldições cabeludas que proferi mentalmente. Ficamos sem resposta enquanto eu calculava que, até na mais gourmetizada das padarias das redondezas, àquela hora eu já estaria de estômago forrado.

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Café hoje, só amanhã

Divulgação

Bola pra frente, vamos dar uma olhada no cardápio. A folhinha marrom detalhava o conceito slow food adotado pelo estabelecimento. Traduzindo: café hoje só amanhã!

Naquele momento, minha paciência de monge zen já recorria desesperadamente ao volume morto. Deve ser por isso que, ao ler os textos do cardápio, me emputeci com a infantilização gourmetizadora. O menu traz passagens do tipo “bolo mais gostoso do mundo”, “chocolate quente muito muito muito cremoso”. Concedi tal impressão a minha falta de saco e, depois, até simpatizei com o cardápio.

Pedimos, então. Comanda em mãos, voltamos para os nossos minutos de penitência slow fúdica à cadeirinha de madeira. Anoitece.  Na mesa ao lado, uma criancinha aos berros externa meu sentimento ancestral de matar a fome: “por que tá demorando taaaanto”, repete aos berros enquanto a moderação adulta me impede de me juntar a ele no protesto esgoelado.

Depois de perceber que já estou há uns bons 40 minutos abundado no café (passarinho que senta na slow chair sabe o c* que tem, diria, mais ou menos assim, meu vô Geraldo) chega, protocolar, o garçom hipster. São três viagens trazendo a cestinha diminuta com nossas guloseimas. As minhas na frente, obrigado Jesus.

Tudo impecável. Uma bela fatia da dobradinha bolo de cenoura e cobertura de chocolate. A bebida é um delírio achocolatado, me fez o cara mais popular da mesa, já que ninguém resistia a umas boas goladas. Os waffles com mel, o pão rústico orgânico e o costumaz capuccino expresso eu não experimentei. Comemos. E paguei a conta e saí sem olhar para trás.

Em casa, horas depois jantei o que sobrara do sábado. Obrigado, Deus, pela minha cozinha cotidiana de macarrão alho e óleo e vinho barato.

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