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Coitadinho é a vovozinha

Crer que alguém é uma vítima ou mais infeliz porque possui deficiência e, pior ainda, exteriorizar isso, é lamentável

Mateus Lima – Professor e pessoa com deficiência visual (Arquivo Pessoal)

Escrito por Mateus Paulo de Lima

25 OUT 2021 - 09H16 (Atualizada em 25 OUT 2021 - 10H15)

UOL

Oi gente. Mês da Padroeira, da criança, do professor, do halloween, etc. Um mês legal. Mas sabe o que não é legal? Prejulgamentos. Desculpem, crer que alguém é uma vítima ou mais infeliz porque possui deficiência e, pior ainda, exteriorizar isso, é lamentável. Aprecio poder apresentar aqui temas relevantes sobre direitos e deveres, alguns assuntos por vezes polêmicos ou pouco conhecidos, mas hoje não consegui. Penso que não devo silenciar-me. Por quê? Porque não foi a primeira vez que eu tive de ouvir o censurável termo “coitadinha”. Para quem deseje expressar piedade sobre uma pessoa com deficiência, uma PCD, que o faça com o coração, poupando quem quer que seja de sua impressão pessoal. Embora ambos sejam silenciáveis, lamento e compaixão são sentimentos diferentes.

Retornando da capital em uma curta viagem de ônibus, no momento em que paramos em um semáforo, na escuridão da minha cegueira não pude deixar de ouvir duas senhoras fazerem um comentário que entendi ser sobre uma mulher cadeirante que passava ao longe. “Olha aquela moça. Em uma cadeira de rodas e grávida. Que judiação”. Ao ouvir tal bobagem, uma indignação me acendeu e aí deu ruim. Eu não mais consegui me desligar do papo das senhoras que tricotavam em voz alta. O assunto ainda piorou: “deviam capar quem faz isso com essas coitadinhas”. Acompanhado da minha esposa, antes que o sinal se abrisse, pedi a ela que me descrevesse a cena. Tratava-se de uma moça jovem, cadeirante e com gestação avançada que estava na companhia de um adolescente e uma outra senhora. Três pessoas juntas e com sacolas a quem não é possível saber qual era o grau de parentesco nem o que carregavam, mas que estavam sorridentes, aparentando felicidade. Gente como a gente que driblavam os obstáculos pelas calçadas inacessíveis da região norte paulistana. Poderia ser qualquer um, tanto faz. De qualquer modo o semáforo se abriu, o veículo acelerou e aquelas pessoas se foram em seu anonimato. Mas a indignação ficou e cá estamos. Vamos a pedagogia dos fatos:

o lamurio velado daquelas senhoras me chamou a atenção, então eu me peguei a recordar das muitas vezes que, também eu, fui considerado assim: “um coitadinho”. Piedade e lamento logo à primeira vista. Vou baixar a guarda por um instante para deixar claro que entendo as lamúrias alheias como expressão humana de um bem querer transparente. Porém, vamos ao que de fato acontece quando se expõe um lamento pessoal por algo único e desfavorável ao próximo. Por exemplo, uma deficiência. Poucos conseguem entender o quanto esse tipo de sentimento pode ser incômodo, especialmente quando é exteriorizado. Uma impressão equívoca que, para a PCD, torna-se depreciativa e preconceituosa. Quase sempre as pessoas com deficiência estão no mundo sobrevivendo felizes com o que tem e são, enfrentando a vida de frente, lutando em sua existência. Para todas as pessoas, independentemente de possuírem ou não algum grau de deficiência, como nas observações quanto a citada cadeirante, uma gravidez não é objeto de estupro ou de violência. No entanto, é de causar cólera supor que sua gestação seja fruto de algum absurdo. É impressionante como, mesmo experimentando o fantástico advento da informação, nós ainda encontramos esse nível limitado de percepção sobre o outro.

No mês passado, curiosamente, eu trousse aqui exatamente o tema sexualidade e sua igualdade de direitos. Ainda precisamos vencer essas ideias retrógradas de inferioridade, de concepções preconceituosas. É evidente e eu reconheço que nos campos estrutural, legal e inclusivo, continuamos com muito a avançar, mas no critério corpo, família e vida, as pessoas com deficiência também tem direito de protagonizarem seus afetos. Indivíduos que, como qualquer um de nós, também estão sujeitos a erros ou frustrações. Nenhuma pessoa com deficiência precisa de um terceiro, principalmente um desconhecido, prejulgando-o em sua gestação, seu romance com quem quer que seja, o lugar que se frequenta, seu estilo ou visual. Primeiro vem a pessoa em seu livre arbítrio, depois sua deficiência com seus acarretamentos absolutamente pessoais e de cunho privado. Problemas categoricamente dela, limitações a serem superadas por ela, fazendo-se dispensáveis essas manifestações sentimentais que beiram o fúnebre.

Com relação a pessoa com deficiência e sua vida social, diante de um episódio em que ela surja gestante, tatuada, entrando ou saindo de algum motel, dirigindo seu carro adaptado, saindo alterada de uma baladinha, esbravejando pelos seus direitos, ou seja, fazendo o que fazem qualquer pessoa, é importante saber que isso representa tão somente o exercício pleno de sua cidadania e seus direitos inerentes.

Muito provavelmente, naquilo que tange direitos ou valores éticos e morais, você não julgue uma PCD supondo que, seja qual for sua limitação, a vida dela seja inferior a sua própria. Porém, ainda há quem o faça. Motivo pelo qual eu precisei chegar em casa e escrever, pois essas opiniões limitadas ainda existem e, pior, são exteriorizadas.

Pessoas com deficiência também amam, acolhem, oram, bebem, fumam, se tatuam, transam, engravidam, assumem outras identidades de gênero, rezam, brigam, gritam, choram, perdoam e pedem perdão, trabalham, estudam, se casam e se divorciam, viajam, tornam-se religiosas, se elegem para a política, compram, vendem, consomem, enfim, são indivíduos que querem existir neste mundo gozando livremente daquilo que verdadeiramente são dispensadas a sordidez enrustida nas suposições alheias.

Que nós possamos enxergar, perceber e acolher a todos com a sanidade da cortesia, sem apontamentos nem preconcepções. Deixemos a PCD viver e experimentar as belezas do existir. Com relação a qualquer pessoa, se faz necessário acolher, proteger, educar, ensinar, catequisar, incentivar, enfim, preparar para vida. E com relação a PCD, em particular, supor que essas ações lhes serão garantidoras de acertos constantes, é tirar delas o direito de serem inexatas, de também errarem e se fazerem indivíduos constantemente em construção como somos todos nós. Dúvidas, sugestões ou críticas, contate escrevereincluir@gmail.com, e vamos juntos construir um debate saudável e inclusivo.

Um abraço fraterno.

Escrito por:
Mateus Lima – Professor e pessoa com deficiência visual (Arquivo Pessoal)
Mateus Paulo de Lima

Professor e pessoa com deficiência visual

Graduado em pedagogia. Pós graduado em: Ciências Sociais pela PUC Rio e Políticas Públicas pela PUC DF

Atuou 10 anos como professor da rede estadual do Estado de Rondônia nas disciplinas de Sociologia, Filosofia e Educação Especial

Atualmente trabalha com palestras motivacionais

escrevereincluir@gmail.com

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