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Obrigado, mas não quero me sentar

Sei que as pessoas com deficiência, PCDs, recebem um cuidado social, legal, exclusivo e justo. Porém, muitas vezes, esse “cuidado” extrapola o racional.

Mateus Lima – Professor e pessoa com deficiência visual (Arquivo Pessoal)

Escrito por Mateus Paulo de Lima

28 FEV 2022 - 13H15 (Atualizada em 28 FEV 2022 - 13H34)

Divulgação/PMT

Oi gente. É fevereiro, mês que chama o aguardado feriadão de carnaval. Bora aproveitar. Neste artigo, mesmo sob o risco de ser incompreendido, vou me permitir opinar. Embora receoso, entendo ser importante compartilhar uma experiência que vivi recentemente, pois desejo que a comunidade avalie e se aprimore. Eu sei, e já ouvi muito, que as pessoas com deficiência, PCDs, recebem um cuidado social, legal, exclusivo e justo. Porém, muitas vezes, esse “cuidado” extrapola o racional. O que eu quero dizer com isso? A história que segue aconteceu comigo.

Ao sair de casa para ir a agência dos Correios mais próxima, onde postei alguns exemplares do livro que publiquei recentemente, enfrentei um episódio desnecessariamente constrangedor. Inclusive, com a necessidade de tomar uma atitude triste. Ocorreu que, ao embarcar no ônibus coletivo aqui de São Jose dos Campos, eu seguiria nele apenas a distância entre dois pontos, um percurso curto, somente o tempo de entrar, atravessar a catraca, esperar um pouquinho e logo adiante descer. Contudo, quando pus os pés dentro do veículo com minha guia/bengala e meus óculos escuros, começou um alvoroço geral, ou seja, os inúmeros pedidos para que eu me sentasse imediatamente. Acontece que eu não queria, não seria necessário. Como expliquei, o percurso era bem curto. De repente, dos assentos prioritários, duas senhoras se levantaram e insistiram que eu deveria me sentar sim. – Não, obrigado, podem ficar tranquilas que desço logo. – Respondi, repetindo por mais quatro vezes. Uma delas, de tão convicta que eu precisaria me sentar, chegou a se irritar comigo e ir para os fundos do veículo resmungando como se fosse um absurdo eu, um cego, querer seguir viagem em pé. Paciente, tentei relevar e deixar pra lá, porem, desinformado, o motorista tomou as dores das velhinhas. Impaciente, ele asseverou que, sim, que eu teria de me sentar. Agradeci, mas recusei novamente. Expliquei tratar-se de uma parada apenas. Não compensaria sequer o transtorno de retirar das costas minha mochila de livros para colocá-la no colo. Já, já eu desceria. Então ele me alegou algo estranho: – Aqui na frente você não pode ir em pé. – de onde ele tirou isso eu não sei, mas ok! Apanhei meu Passe Livre, liberei meu acesso, atravessei a catraca e fui para próximo a porta de saída, onde pensei que poderia seguir em paz. Mesmo lá dos fundos, ainda ouvia a senhora, aquela que ficou lá na frente, dando um verdadeiro show de achismo, inconformada e resmungando porque eu não me sentei. Pior, pude ouvi-la denunciando-me ao motorista, dedurando que eu permanecia de pé. Julguei muita falta do que fazer da tiazinha, mas ignorei também.

Quando terminou o entra e sai dos demais passageiros, pensei que já tivesse acabado o assunto, mas não. Ouvi então a voz da cobradora avisando que à minha frente os bancos estavam vazios. Eu sabia, já tinha tateado o braço do banco erguido e corrido a mão sobre o encosto, de modo a ter reconhecido tudo ali ao meu redor, incluindo as vagas. Só não queria mesmo era me sentar. Outra vez eu respondi educadamente: – Não é preciso moça. Muito obrigado. Descerei logo. – Creio que, lá da frente, talvez pilhado pelas incitações da velha, ao perceber minha resistência, o motorista não gostou e, em voz alta, me ordenou: – O cidadão ai que não enxerga tem que se sentar sim! Eu não vou dirigir o ônibus com você estando de pé. Primeiro eu não poderia ficar de pé lá na frente, agora, a suposta regra valia para todo o veículo? Eu contra argumentei: – Cara, minha deficiência é visual. Será só um ponto até que eu dessa. Consigo ir aqui. Confie, é seguro. Só estou em pé, igual quase todos também estão. – Em resumo, depois de toda essa exposição desnecessária, após algumas pessoas,

inconvenientemente, forçarem a barra para eu me sentar, entendi estar atrasando a viagem dos demais. Nesse momento eu me chateei. No ônibus, o caso já era público, alguns passageiros me defendiam, enquanto outros reclamavam da demora. Uns pediam para que eu desistisse, que me sentasse logo e assim o motorista seguisse em frente. Aborrecido, eu insisti pelo não. Repeti em voz alta que só gostaria de permanecer em pé, pois desceria em breve. A coisa tumultuou. O motorista não arredou de sua exigência injustificada, e as senhoras, aquelas duas teimosas do início, colocavam pilha na discussão. Diziam elas que eu estava sendo “grosso”, “inconveniente”, e “mal agradecido”. Que calunia. Depois de tantos obrigados da minha parte, outra injustiça, pensei.

Percebi que as velhas ganhavam adeptos. Deste modo, frustrado, eu optei por repetir novamente, tentando manter cordialidade na expressão, que eu não precisava me sentar, que eu poderia ir igual outros, gente de pé e que estavam bem próximos a mim. De repente, até de polícia falaram: - Nessas horas a gente chama a polícia e ainda sai como errado. – Polícia? Me indignei sobre o porque. Qual seria a manchete? Cego é preso após recusar sentar-se? Embora trágico, o episódio também estava ficando cômico, afinal eu só queria ficar em pé. Lembrei então de uma antiga professora que dizia para “nunca tocar tambor para doido dançar”. Ela tinha razão, se me sentasse, eu estaria ferindo meus valores sobre liberdade de escolha, aqueles que não prejudicam ninguém. Se eu continuasse com a discussão, poderia até ser agredido, sabe Deus. Suspirei profundo e decidi por uma atitude que costumo rejeitar, ou seja, um sermão geral em alto e bom tom: - Eu não desejo para nenhum de vocês o que está acontecendo comigo aqui. Isso não é justo, não é inclusão nem respeito a prioridade. O que vocês estão fazendo é me tratar com inferioridade, impondo ordens sobre minha vontade. – Poxa! Eu só queria permanecer em pé. Antes de descer, ainda agradeci aos que me defendiam e, aos algozes do assento, alertei que, um dia, eles poderiam estar no meu lugar, sentir na alma o quanto é triste ser cooptado e ter uma decisão pessoal roubada pelo desconhecimento ou vaidade alheia. Quando desembarquei, antes mesmo de ter saído do lugar, segui na direção onde já podia ouvir o motor do ônibus de trás, parado ali no mesmo ponto, indo para o mesmo destino, a zanga me consumia. No entanto, a vida é assim.

Entrando em outro veículo, acostumado com meu itinerário, o motorista disse apenas:

– Fala garoto! Sobe aí, e fique a vontade. – Cumprimentei o cobrador, expliquei que meu passe tinha acabado de ser utilizado, que talvez travasse, contei o motivo e ambos, cobrador e motorista, depois do transtorno passado, riram da situação vivida no outro ônibus. Diferente dos minutos anteriores, enfim, consegui seguir em pé estando autorizado até a descer pela frente. Precisava daquilo?

Por que essa história é relevante? Porque ainda precisamos muito incluir, garantir direitos para a PCD, mas nunca, jamais, nós devemos furtar dela sua liberdade de optar, de ser e existir segundo suas vontades. Todo o tempo, eu só quis ir em pé, segurando firme nas barras de apoio, igual aos demais. Mas não. Quase expulso, Tive de sair do ônibus porque, despreparadas e desinformadas, uma parcela de pessoas estava decidida sobre como eu, um passageiro cego, deveria me comportar. Muito chato isso, pessoas agindo como se soubessem o que é ou não melhor para a gente.

Concluindo, é justo respeitar a vontade da PCD, até mesmo para cobrar dela, quando necessário, a liberdade que ela teve de escolher, de decidir por si. Continuem solidários, cedendo lugar para idosos, gestantes e pessoas com necessidades reais de se sentar. No entanto, quando alguém se avaliar capaz de ir em pé, se segurando nos apoios do veículo,

consciente de sua segurança, respeitem essa vontade e o deixe livre em suas escolhas. Inclusão não é decidir pela vida do outro, mas dar a ele liberdade de definir como quer viver a sua. Dúvidas ou sugestões contate: escrevereincluir@gmail.com e obrigado por sua dedicação a essa leitura.

Escrito por
Mateus Lima – Professor e pessoa com deficiência visual (Arquivo Pessoal)
Mateus Paulo de Lima

Professor e pessoa com deficiência visual

Graduado em pedagogia. Pós graduado em: Ciências Sociais pela PUC Rio e Políticas Públicas pela PUC DF

Atuou 10 anos como professor da rede estadual do Estado de Rondônia nas disciplinas de Sociologia, Filosofia e Educação Especial

Atualmente trabalha com palestras motivacionais

escrevereincluir@gmail.com

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