O período militar brasileiro, que assolou a produção cultural no final dos anos 1960, tornou exígua qualquer esperança de se fazer música que não habitasse os territórios consentidos pelo governo. A repreensão foi sentida principalmente por artistas experimentais, oriundos da música instrumental. Com a censura instaurada, muitos deles foram obrigados a criar seus frutos em terras estrangeiras.
Junto a artistas consagrados internacionalmente, como Hermeto Pascoal, John MacLaughlin e Joe Zawinu, Zé Eduardo Nazário (baterista e compositor, indicado ao prêmio Grammy na categoria “best jazz performance”), foi um dos que souberam aproveitar a herança dos mestres exilados para a derrubar os muros que embargavam a música brasileira – lançando, com o Grupo Um, a primeira obra instrumental independente produzida no país: o disco “Marcha Sobre a Cidade”, de 1979.
Meon - Como foi trabalhar com música experimental numa época de censura irrestrita?
Zé Eduardo Nazário - Em 1967, começamos a trabalhar uma música mais livre, dentro de uma nova concepção, que não copiasse nada. Trocávamos muitas ideias, buscando coisas diferentes, sem videocassete, internet, essas coisas. Não tínhamos escola, não tínhamos livros. Hermeto Pascoal e Airto Moreira traziam informações dos EUA e mantínhamos uma amizade intensa. Quando fui trabalhar com Hermeto, já buscava uma música mais livre, assimilando vários gêneros para criar alguma novidade. Hermeto foi o primeiro a fazer música instrumental profissionalmente no Brasil, dentro de uma sonoridade contemporânea e audaciosa. Nesse grupo, estavam meu irmão Lello e o baixista Zeca Assumpção. Começamos a trabalhar algumas composições. Em 1977, estava criado o Grupo Um.
“Marcha Sobre a Cidade” é o primeiro disco instrumental independente do Brasil. Como foi essa conquista?
Ao contrário de Hermeto Pascoal, que era conhecido e já havia tocado com Miles Davis, o Grupo Um encontrou um caminho muito difícil. Não havia mercado para música instrumental no Brasil. Então começamos a fazer as “Sessões Malditas”, todas às segundas-feiras, à meia-noite. Uma coisa alternativa, underground. Como as gravadoras não davam atenção, concluímos que era preciso produzir um disco independente. Assim lançamos “Marcha Sobre a Cidade” e arrumamos uma temporada no teatro Lira Paulistana. O sucesso fez com que vários grupos independentes também surgissem. Em 1983, a música instrumental começou a ganhar seu espaço. Paralelamente, eu, o Zeca Assunção e o Mauro Senize, trabalhávamos com o Egberto Gismont, que também nos ajudou a ganhar reconhecimento com a música de vanguarda.
Ser precursor da música experimental e independente, em plena ditadura, não é pouca coisa.
Já havia música instrumental, mas não independente, de vanguarda. Ainda mais quando veio o decreto AI-5, em 1968, quando arrasaram com tudo. Todos esses músicos que citei partiram para EUA e Europa. Não sobrou ninguém. Reconstruímos a música a partir de uma terra devastada que colocou a novela em primeiro lugar. O povo ficava em casa, restrito a assistir televisão, com medo de sair às ruas. Foi a realidade que vivemos, de passar em operação “pente-fino” toda noite, quando íamos tocar. O exército bloqueava as ruas, revistava todo mundo. Se não fossem com sua cara, metiam uma bala na cabeça e pronto.
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