Paris. 1957. Vélodrome d'Hiver
Cartier-Bresson/Fundação Cartier-Bresson
Além de ser uma exposição grandiosa de obras originais, a retrospectiva inédita Henri Cartier-Bresson, inaugurada na última semana no Centro Pompidou, a primeira na Europa após o desaparecimento do mestre, tem três grandes méritos. Primeiro, é a revelação comovente das inúmeras e desconhecidas facetas de um percurso de 70 anos, totalmente oposta às aproximações "unificadoras" que tentaram colocá-lo até agora dentro de uma mesma entidade estilística. Segundo, restitui a "aura" da fotografia como objeto exclusivo, questionando a ideia benjaminiana da reprodutibilidade técnica. Por último, constitui a perfeita demonstração do que é, e não é, a fotografia enquanto arte, em nossos dias.
"Entrevista? Não, eu não dou entrevistas, você pode fazer uma crítica do meu trabalho, se quiser, mas não me interessa o lado anedótico das conversas." Quando, a despeito destas primeiras palavras que ouvi dele em 1996, consegui convencê-lo a conceder uma exclusiva para a série Encontros Notáveis do Caderno 2, do jornal "O Estado de S.Paulo" eu não imaginava quem era de fato Henri Cartier-Bresson. Assim como ainda não fazia ideia dos seus deslocamentos estéticos e vivenciais, oito anos depois, quando ele faleceu e escrevi o seu necrológio, também para o Caderno 2 .
Todos conhecemos desde sempre a obra e as afinidades do "olho absoluto do século", o gênio da composição e da intuição visual. Estamos convencidos que suas imagens são um milagre de equilíbrio e inteligência e continuamos a alimentar o seu mito de "mestre do instante decisivo", autor da famosa Derrière la gare Saint-Lazare, que é uma daquelas fotos suspensas no tempo.
Porém, as cinco centenas de fotografias, desenhos, pinturas, filmes e documentos desta retrospectiva prodigiosa - da maneira como foram escolhidas, montadas e exibidas - são tão incomparáveis a tudo que vimos até agora, que todas as nossas referências parecem supérfluas.
Descobrimos muito mais do que isso. Descobrimos a verdade do homem.
O verdadeiro Cartier-Bresson é um personagem muito mais complexo, resultado de diversas influências. São vários Cartier-Bresson, dentro de uma alquimia muito complicada. A exposição traça, em oito segmentos cronológicos, a aventura do filho de um grande industrial que revela desde cedo uma curiosidade e um talento ímpares, e escapa do seu destino burguês para seguir o caminho da liberdade e da experiência. A vida dele parece um puzzle, no qual cada pedaço se encaixa para formar um sentido.
A trilha forma um romance coerente, rico e fascinante, onde multiplicam-se as descobertas, as tentativas, os encontros simbólicos, o aprendizado da pintura com André Lothe, a geometria e a proporção áurea e finalmente a decisão definitiva de "ser um fotógrafo". Do contato com o surrealismo, surgem os motivos emblemáticos do seu imaginário (objetos embrulhados, corpos deformados, pessoas adormecidas, etc) e sobretudo a "atitude surrealista": espírito subversivo, gosto pelo jogo, pelo inconsciente, pela digressão e o acaso. Ele é sem dúvida um dos fotógrafos mais autenticamente surrealistas da sua geração.
Política. De começo, a sigla HCB é associada à da Magnum, agência que ele funda em 1947 com o amigo Robert Capa. Descobrimos aqui a importância da política na vida do fotógrafo. Engajado e militante, quanto mais ele se politiza à esquerda, mais as suas imagens tornam-se realistas e contundentes, e mais irreverente ele é nas posições assumidas. Quando fotografa a coroação do rei Jorge VI em Londres (1937), num momento de crise, por exemplo, é o olhar das pessoas, não o rei, que o atrai. O mesmo ocorre nas fotos esportivas, onde os espectadores ou um ciclista lendo jornal (Corrida de Bicicleta, Os 6 dias de Paris) interessa muito mais do que a competição em si.
Deambulando pelo seu século, o olhar deste fascinado passeador - e lúcido correspondente das maiores revistas da época, que odiava fotos coloridas - percorre a África, cruza o destino trágico dos republicanos espanhóis, acompanha a Liberação de Paris, capta a lassidão de Gandhi algumas horas antes do seu assassinato, testemunha a China de Mao, a URSS pós-Stálin, México, Estados Unidos e Cuba.
Cartier-Bresson namora com o cinema, assiste Jean Renoir em três grandes filmes. E fixa as imagens de seus contemporâneos essenciais - Mauriac em levitação mística, Giacometti ou Sartre como personagens da suas próprias obras, Faulkner, Camus e tantos outros cujos retratos ficam agora para a eternidade.
Bastidores
O mestre tinha a rara capacidade de perceber (e entender) rapidamente o que se passava em cada lugar, momento, e nos bastidores de cada evento. Paralelamente ao trabalho engajado ou jornalístico, tecia uma espécie de antropologia visual admirável. Onde quer que estivesse fazia, por conta própria, séries de imagens, como se fossem enquetes temáticas ou transversais, sobre questões da sociedade. Era, segundo ele, uma "combinação de reportagem, filosofia e análise social e psicológica".
O final da exposição é um pouco melancólico. A partir dos anos 70, o fotógrafo encontra a sua futura mulher, descobre o budismo e "deixa a calçada" para cuidar da sua celebridade. E também deixa a Magnum para supervisionar os seus arquivos, vender tiragens, exibi-las e publicar livros. Realiza apenas ocasionalmente algumas imagens mais contemplativas. É nos museus, a desenhar, que passa a maior parte do seu tempo. A fotografia, para ele, é um "pequeno ofício". Como se o desenho e a pintura fossem, de fato, a única maneira de transcender o real que ele "observava, observava, observava e, pelos olhos, compreendia". Talvez Cartier-Bresson tivesse razão.
Shanghai, China, entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949
Cartier-Bresson/divulgação/Fundação Cartier-Bresson
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