Alunos

A mamãe de Théo

Texto escrito por Julia Latouf da Cruz Tauk Santos

Julia Latouf da Cruz Tauk Santos

Escrito por Julia Latouf da Cruz Tauk Santos

17 DEZ 2021 - 14H52

Freepik

-Titia! - Um pequeno pacote de roupas amarelas em torno dos seus cinco anos chamava pela tia, Marta.

Ele corria pela enorme casa – sua tia era uma empresária rica, e Théo amava desfrutar disso - atrás de sua tia. Há alguns momentos, Théo estava brincando com seu novo carrinho Hot Wheels que Marta fez questão de comprar ao ver a cara birrenta do sobrinho – sim, Théo é um grande mimado, mas um mimado que Marta faz questão de amar e agradar, até que se lembrou do pedido que a professora havia feito durante a aula...

Ao passar por três corredores, subir as escadas e passar por três quartos, ele conseguiu parar em frente à uma porta que dizia ‘Escritório’ em uma placa de madeira mais clara do que a madeira da porta. O pequenino sabia que hoje Marta estava trabalhando em casa, devido a um erro no sistema da empresa que ela não conseguiu arrumar no local, então estava tentando em casa. Théo deu duas batidas na porta, resmungando um pouco de dor pela força que havia feito, e logo em seguida ouvindo um “Entre.”

Na ponta dos pés, o pequeno pacote levantou a mão para alcançar a maçaneta, e esticando tanto as pernas quanto os braços, conseguiu abrir a porta. Mas devido à posição que se encontrava, assim que a porta abriu, Théo caiu de cara no chão, fazendo um estrondo tão grande que Marta, que se encontrava sentada em uma cadeira preta de costas para a porta, se levantou instantaneamente e se virou para ver a origem do barulho.

-Théo! - Marta chamou ao ver seu sobrinho esparramado pelo chão. Ela correu até Théo, que ainda se encontrava de cara no chão quase como se tivesse desistido de tudo, e se ajoelhou ao lado do pequeno, “Você está bem?”

-Sim... Meu nariz dói. - Théo falou com a voz abafada, já que seu rosto ainda estava no chão.

-Levante, se você continuar aí no chão frio, vai pegar um resfriado. Eu vou dar um beijinho pro dodói no nariz sarar. - Marta falou, pegando um braço de Théo com as mãos e tentando puxá-lo para cima - Venha, quanto mais demorar, mais vai doer.”

Jin Ling obedeceu, soltando um resmungo de preguiça. Ele usou os braços e se ergueu para tirar a cara do chão, enquanto Marta usava os braços para puxá-lo pela

cintura, o trazendo para seu colo. Se acomodando no colo da tia, o pequeno a abraçou.

-O que foi, Théo? - Marta perguntou. Seu sobrinho tinha vindo ao seu quarto por algum motivo, e neste momento tudo que a mais velha imaginava era que Théo estaria fazendo algum drama para ganhar presente novo. Ela também rezou mentalmente para ter autocontrole e responder um ‘não’, para finalmente parar de mimar o pequeno.

- Teremos uma apresentação de natal na escolinha. - Começou o pequeno - nos falaram para chamar os pais, mas...

Marta não precisava que Théo completasse a frase. Ela já sabia o que o sobrinho queria dizer: seus pais estavam mortos.

As memórias do fatídico dia são vívidas para o mais velho: Era seu aniversário no dia. Théo estava junto dela, com cerca de seus três anos. Ele tinha sido deixado em sua casa porque Marta implorou para sua irmã para passar o dia com o sobrinho, e, quando Ágatha e Anthonny – sua irmã e seu cunhado, respectivamente – fossem comemorar seu aniversário, eles levariam Théo de volta pra casa.

Entretanto, quando terminou de servir a mesa, recebeu uma ligação de um número desconhecido pelo telefone fixo da casa. Ela saiu da sala de jantar e foi para sala de estar, onde seu sobrinho se encontrava sentado no sofá assistindo Peppa Pig na TV. Marta atravessou a sala, pisando no tapete felpudo do chão e dando uma rápida olhada em Théo para ver se estava tudo bem.

Atendendo o telefone, Marta atravessou mais uma vez a sala, para não atrapalhar o som do desenho, e voltou para a sala de jantar. Ela ouviu uma voz feminina lhe perguntar:

- Alô, falo com a senhorita Marta?

- Sim. Quem é? - Marta perguntou.

- Senhorita Marta, a senhorita Ágatha e o senhor Anthonny são seus parentes? Aqui é do hospital.

O corpo de Marta tremeu. Como assim “Aqui é do hospital”? A mulher falava na maior naturalidade, quase como se Ágatha e Anthonny tivessem marcado uma consulta lá.

- Si.. -sim. É minha irmã e meu cunhado. O que aconteceu? Eles estão bem?”

Marta ouviu o suspiro de decepção do outro lado da linha. Se seu corpo tremeu antes, agora ele estava em uma estranha dança de pelos arrepiados. O que ela iria dizer? “Senhorita Marta, sua irmã está parindo um segundo filho”?

- Senhorita Marta, lamento informar, mas... a senhorita Ágatha e o senhor Anthonny sofreram um acidente de carro. Tentamos salvá-los, entretanto, eles não resistiram. O carro deles foi fortemente atingido por um caminhão de carga, e o vidro acabou quebrando e atingindo a cabeça deles. Sinto muito...

O mundo de Marta desabou. Seus joelhos tremeram mais ainda e ela caiu no chão em um baque surdo. Ela desceu o braço que estava com o telefone lentamente, o tirando do ouvido. A médica que estava na linha percebeu que a mulher havia parado de falar, então desligou.

Já haviam se passado dois aniversários, mas Marta ainda tinha problemas com o dia. Ela só não deitava no seu travesseiro e chorava tomando uma garrafa de Whisky durante a noite inteira porque Théo insistia em comemorar seu aniversário.

Balançando a cabeça para esquecer as memórias, Marta respondeu:

- E você quer que titia vá?

Théo soltou Marta e bateu palmas, encarando a mais velha:

- Sim, titia! Eu quero que você esteja lá para me ver!

- Eu vou ver se tenho tempo. - Marta respondeu banalmente. Ela andava muito ocupada ultimamente, além disso, era só uma apresentação boba, certo? Se ela faltasse, compraria um bolo para Théo e diria que foi porque estava preparando uma surpresa.

Marta jamais viraria a noite adiantando seu trabalho e o trabalho de seus funcionários para ir e levar toda a empresa para ver seu sobrinho, certo?

~~

- Cleiton, senta ali. - Marta apontou para a última cadeira da primeira fileira. Ela se encontrava no auditório da escola de Théo para ver a apresentação do sobrinho.

Sim, ela adiantou o trabalho de todos e levou a empresa inteira para ver o sobrinho cantando coral de natal com o resto dos colegas. Não só isso, como ela também levou o namorado, Jonas, para mostrar que valia a pena namorar com ela, mesmo que criasse o sobrinho como um filho.

- Jonas, sente ao meu lado. - Marta apontou para a cadeira ao lado, mas ainda não havia se sentado porque estava posicionando o restante da empresa - Cláudia, aí não. Não está vendo que tem uma mãe esperando o marido chegar? Sente ali. -

Apontou para uma carteira da terceira fileira - Quero todo mundo filmando em todos os ângulos, senão é demissão.

Quando finalmente terminou de posicionar todos os funcionários da empresa – mesmo que os pais à sua volta estivessem lhe encarado com um olhar de “essa mulher é uma louca?” -, se sentou ao lado de seu namorado.

- Martinha, você não está muito cansada? Pode dormir no meu ombro, se quiser. Jonas ofereceu.

- Que dormir o que, Jonas!? Acha que vou perder meu sobrinho vestido de duende cantando coro de natal para mim? É uma oportunidade única na vida! - Marta repreendeu o namorado.

Na verdade, Marta viu esse mesmo coral ano passado, vai ver esse ano e também verá no próximo. Porém, em todos eles, a mulher se emociona e leva uma grande quantidade de pessoas para ver. No ano anterior, levou o círculo social inteiro – pais, tios, primos, sobrinhos, amigos e até vizinhos – de Jonas para ver.

Mimar o sobrinho? Pff, Marta é responsável demais para fazer isso.

De repente, as luzes em volta se apagaram, ficando apenas a do palco acesa. Pelo canto, entraram um grupo de crianças vestidas de duendes com as vestes variando entre vermelho e verde, e imediatamente Marta pegou o celular e começou a filmar, focando em Théo. Ela já estava sentindo as lágrimas se formarem no canto dos olhos.

“Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells swing and jingle bells ring”

A música começou a ser cantada pelo conjunto de crianças, e Marta tremeu. Ele não estava acreditando que colocaram uma música de Natal que se passa no filme ‘Mean Girls’ para crianças cantarem e dançarem. Isso traz memórias ruins para Marta. Se deixarem, ela vai abrir um processo nessa escola.

Marta tentou se acalmar pensando, “Calma. Essa é uma escola brasileira. É óbvio que o Brasil ousaria fazer uma coisa dessas.”

Voltando a prestar atenção na apresentação, Marta viu seu sobrinho balançar os braços de um lado para o outro e dar giros com os pézinhos enquanto cantava. O pequeno estava muito animado que sua titia tinha vindo ver a apresentação.

Não, Marta não esqueceria a raiva de ouvir a música que mais odiava porque viu seu sobrinho dançando graciosamente, lindamente, perfeitamente - ok, ela esqueceu sim.

“Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells chime in jingle bell time” Marta não percebeu quando a música tinha chegado em outra estrofe.

Théo deu uma pirueta com os pés e a mulher emocionada começou a se questionar se estava numa escola de balé ou em uma creche. De qualquer maneira, ela não se importou com a pergunta que havia acabado de fazer mentalmente e apenas ficou mais feliz.

Marta sentiu as lágrimas começarem a descer, e, talvez, as duas bolsas roxas enormes abaixo de seus olhos tenham valido a pena.

Talvez nada, com certeza valeu a pena trazer todos os funcionários da empresa para ver a perfeição humana – segundo Marta - dançando “Jingle Bell Rock”.

Ela continuou com o misto de emoções que estava sentindo, sorrindo e chorando como um palhaço a cada cinco segundos. Marta agradeceu internamente que apenas seu namorado a conseguia ver naquela escuridão. Se seus funcionários vissem seu estado patético, ela nunca mais seria levada a sério.

Depois de um tempo, e muitas piruetas, crianças tropeçando umas nas outras, gorros dos duendes caindo no chão e professoras com vontade de invadir a apresentação para consertar algumas coisas – detalhes ignorados por Marta, que estava mais ocupado prestando atenção na figura de seu sobrinho -, se ouviu a última parte da música.

“That’s the jingle bell rock

That’s the jingle bell

That’s the jingle bell

That’s the jingle bell rock”

Na última frase, a palavra ‘rock’ foi estendida pela voz das crianças e elas levantaram os braços para cima e cruzaram as pernas de forma diagonal. Nesse momento, Marta se levantou e puxou Jonas para cima, batendo palmas e obrigando o namorado a bater junto. A cena seria extremamente vergonhosa caso os funcionários de sua empresa não fizessem o mesmo – e eles apenas fizeram por medo da demissão.

Seguindo um grande grupo de pessoas da mesma empresa, os pais também se levantaram e começaram a bater palmas antes que chegasse totalmente o final da música. E quando chegou, ninguém parou de bater palmas.

Em seguida dessa apresentação, houveram mais cinco, mas Marta passou todas elas reassistindo o vídeo de seu sobrinho dançando, cantando e girando divertidamente no palco.

~~

-Você viu, titia?! - Um pacote, desta vez de roupas verdes e vermelhas e um gorro igualmente das mesmas cores, correu até as pernas de Marta, as abraçando.

-Sim, eu vi Théo. Foi muito bonito. Você dança muito bem. - Marta riu. Ao seu lado estava seu namorado.

- Théo, você foi incrível na apresentação! Você tem muito talento! - Jonas falou, se abaixando e colocando as mãos no joelho para ficar da mesma altura que o pequeno. - O que você acha de irmos comer no seu restaurante favorito para comemorar?

- Sim, sim, vamos tio Jonas! - Théo exclamou, soltando das pernas de Marta para abraçar as de Jonas

- Pirralho mimado, me trocou na primeira oportunidade. - Marta resmungou entre os dentes.

- Mas antes, eu preciso mostrar vocês para a titia! - Théo sorriu, com uma janelinha na boca. Seu dente havia quebrado quando ele caiu da escada da escola, e agora estava esperando crescer, já que aquele dente era de leite.

Puxando o casal, Théo correu pelos corredores da escola, achando sua sala com todos seus colegas e os pais destes.

- Titia! Titia! - Jin Ling chamou, soltando os dois adultos e correndo até a orientadora infantil, que usava uma blusa rosa e um macacão jeans, com os cabelos ruivos presos em um coque frouxo.

- Oh, olá, Théo! O que deseja? Você foi muito bem na apresentação! - A orientadora parou de falar com um pai e se virou para Théo.

- Titia, eu queria apresentar meus pais. - Théo apontou para Marta - Essa é minha mamãe! - Apontou para Jonas – E esse é meu papai!

O corpo de Marta tremeu de felicidade. Ela não estava acreditando no que seus ouvidos estavam captando. Ela olhou para Jonas, tentando ver se ele estava na mesma crise existencial que ela.

Mas ao invés disso, Jonas estava apenas sorrindo normalmente. A professora sorriu e apenas disse:

- Sua mãe é muito bonita, Théo. Você é muito sortudo por ter papais incríveis! Eles com certeza amaram sua apresentação.

Marta sentiu as bochechas queimarem. Os colegas do pequeno olharam para o casal e ela sentiu as bochechas queimarem mais ainda.

Agora a sala inteira conheceria Marta como a mãe de Théo. E, conhecendo crianças, logo seria a escola toda.

Jonas apenas continuou sorrindo para as crianças, vendo algumas sorrirem de volta e outras voltarem ao que estavam fazendo antes. Ele estava, particularmente, feliz de ser chamado de papai.

Inconsciente dos pensamentos de seus “papais”, Théo se despediu, acenando um tchau para a orientadora e indo até os colegas para se despedir, e ir embora para seu restaurante favorito. Nesse meio tempo, Marta, ainda corada, puxou Jonas para um canto:

- Jonas.

- Sim, Martinha? - Jonas respondeu.

- ...Théo me chamou de mamãe. Ele disse que nós somos os pais dele.

Com supervisão de Yeda Vasconcelos, jornalista do Meon Jovem.





Escrito por
Julia Latouf da Cruz Tauk Santos
Julia Latouf da Cruz Tauk Santos

8º ano do ensino fundamental II - Colégio Objetivo Aquarius - São José dos Campos

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