Por Moisés Rosa Em RMVale

São José por quem não vê; deficientes visuais descrevem a cidade

Confira duas histórias de deficientes visuais; cidade completa 249 anos

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John Lennon, 59 anos, descreve a cidade por onde passa

Pedro Ivo Prates/Meon

Nove e meia da manhã de uma quinta-feira com céu nublado. O ponto de encontro com Júlio Augusto Oliveira Coutinho e Silva, 59 anos, ou mais conhecido em São José dos Campos como John Lennon, foi em uma lojinha de seu amigo chamado Nair, próximo de uma igreja evangélica na região central.

Em um primeiro contato, por telefone, ‘John’ transmitiu as percepções e as discriminações que moldam o dia a dia da São José dos Campos. Chegando ao local, John Lennon já esperava na companhia de sua bengala, utilizada para o auxílio a deficientes visuais. Com os cabelos grisalhos e o sorriso no rosto, John Lennon rapidamente se apressou para indicar que estávamos no local certo. 

Cumprimentos feitos, partimos da lojinha, despedindo do amigo Nair, e fomos caminhando pelas ruas da cidade em um bate-papo. Ele se apoiando levemente em meu ombro e transmitindo uma boa energia. Estávamos ali para uma conversa, para ouvir, descrever histórias e as sensações dos deficientes visuais.

Passando por um posto de gasolina, atravessando a via e seguindo pela rua Coronel José Monteiro, John Lennon vai se soltando e contando um pouco da sua vida. Estávamos em direção aos principais pontos da cidade em que Júlio Oliveira costuma ir e se sente acolhido. E ele começa a nos contar a sua história.

Uma forte dor de cabeça foi um dos principais sintomas para a perda da visão. Estava em um show com amigos, aos 33 anos, quando começou a sentir dores na cabeça. Num sábado à noite buscou os primeiros atendimentos em um hospital e foi detectado que havia tido um derrame. Quando criança chegou a contrair histoplasmose - doença provocada por fungos que se proliferam nas fezes dos pombos -, algo que foi apenas descobrir com os exames. Aos 33 anos, Oliveira tinha acabado de participar de um programa de televisão como cover do John Lennon e estava em seu ápice na carreira. Nesta época, ele trabalhava como auxiliar de cozinhar em um barzinho.

"A dor de cabeça foi muito intensa, como se alguém pegasse a minha cabeça e chacoalhasse. Passei por tudo o que tinha que passar, consultas e mais consultas, rodei em várias cidades e nada. Chorei muito, mas tive que começar a me adaptar. Tudo para mim era visual", conta.

Entre as situações relatadas e o nosso andar lento em direção à Praça do Sapo, 'John' é reconhecido por algumas pessoas na rua. Ele faz questão em ser popular e frisa: "sou independente e quero conscientizar e orientar as pessoas sobre a deficiência visual". 

A aceitação para uma nova vida foi difícil, segundo ele. "No início fiquei sem saber o que fazer. Pensei que não fosse me acostumar com essa situação. Mudei radicalmente meus planos e hoje sirvo de exemplo para as pessoas". Com uma boa percepção auditiva por onde passa, John consegue descrever os pontos por onde vamos passando durante a conversa. Passando pela Praça do Sapo e, chegando próximo do calçadão, sentamos em um banco de concreto em frente a uma loja de roupas. Estendemos o bate-papo até 11h, horário em que vai em um restaurante popular.

Morando atualmente sozinho na região leste, em uma casa do CDHU, Júlio relata que espírito aventureiro – ele chegou a subir a Pedra do Baú – e a força de vontade fizeram com que ele nunca se abalasse. Nascido em Areias e há 42 anos em São José, ele descreve as principais ruas do Cento na “palma da mão”. "Ando por tudo na cidade, mas a região central é o meu ponto de encontro e onde eu me sinto bem, principalmente por conversar com as pessoas e amigos que fiz durante esta caminhada".

John faz acompanhamento com especialista periodicamente e, hoje em dia, tira de letra e se locomove para todas as partes da cidade. "Demorei uns 2 anos para me adaptar, cheguei a cair até em buracos, quebrar óculos. Como as pessoas são distraídas, coloquei uma campainha em minha bengala para avisar que estou chegando. Tudo isso pois fui me virando e a faculdade da vida me ensinando".

Com bom humor para tratar a questão, ele afirma que é preciso vencer os tabus estabelecidos pela sociedade e disseminar o assunto. Júlio chegou a casar, troca o chuveiro, entre outras atividades. "Faço tudo normal. Isso que as pessoas precisam entender, não precisa ser dependente. Eu sou um 'de-eficiente'".

Percepções
A perda da visão fez com que ‘John’ percebesse a cidade de outras maneiras. Descrevendo por onde passa, com as idas e vindas das pessoas pelas ruas no Centro da cidade, Júlio diz que o Banhado é um lugar em que sente “paz”, para um momento de repouso, na correria do dia a dia. Lá, ele também chegou a morar por onze anos.

Ele descreve a atual sensação quando passa pelo local. “Quando passo no Banhado sinto uma tranquilidade e uma paz interior, apesar do barulho dos carros que passam constantemente”.

“O lugar me traz boas lembranças e um descanso. Sinto uma sensação de estar em um lugar bem frio, principalmente, no período de inverno, já que sinto a brisa passar pelo meu rosto. É um pulmão da cidade e que falta de ter mais árvores”, descreve.

Aproximando das 11h, encerramos a conversa, caminhado pela Praça do Sapo, e se despedindo na porta do restaurante. 

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Carlos, 35 anos, trabalha no Próvisão

Pedro Ivo Prates/Meon

O locutor
Procurando por personagens, fomos orientados a falar em uma outra data com uma pessoa de gabarito. É isso mesmo, gabarito. Ele não teve a oportunidade de enxergar e perdeu a visão com alguns dias de vida, por conta de excesso de oxigênio no cérebro. Carlos Peres, 35 anos, atualmente mora em Jacareí, mas passa grande parte do tempo em São José dos Campos, onde trabalha como revisor de braile na Gráfica Pró Braille. O seu contato com a cidade aconteceu quando ele mais precisou de ajuda.

Para ele, o atual trabalho é uma segunda casa, já que fez tratamentos e reabilitação no Próvisão. O espaço é onde segue uma rotina durante a semana e, de acordo com o próprio Carlos, vive momentos de alegria.

Chegando no setor de revisão, encontramos com Carlos que nos esperava. Vestido com uma blusa da instituição, cabelo curto e rosto arredondado, nos atendeu em uma sala ao lado daquela que ele utiliza para revisão dos livros. Ele superou os obstáculos com o apoio da família e hoje é casado e tem a sua autonomia.

Até a terceira série, estudou em escola pública na cidade. Com a falta de estrutura para o atendimento, ele foi estudar em um colégio interno em São Paulo, onde ficou até a oitava série. Aos finais de semana, ele retornava para São José.

Carlos conta que o ensino rígido no colégio contribuiu de certa forma para a sua boa qualificação. "Eram utilizados, na época, excelentes conteúdos para os alunos e tinha uma boa estrutura de aprendizado, o que contribuiu para a minha formação. Apesar disso, resolvi retornar para a cidade, concluir o ensino médio na escola Synésio Martins e ficar mais perto da minha família, algo que não abro mão". "Na escola, tinha a ajuda dos professores e amigos que ditavam e me passavam os materiais".

Apaixonado por música e depois de concluir os estudos, Carlos decidiu fazer um curso de locutor. As ondas do rádio sempre o encantaram e ele chegou a trabalhar em várias rádios da cidade. Sem barreiras, Peres partiu para a graduação em letras, se especializando em língua portuguesa. Os estudos não pararam por aí e ele concluiu a pós-graduação em educação inclusiva. Neste período, conheceu o amor de sua vida durante um evento na igreja e há sete anos está casado.

"Minha família é tudo para mim, sempre estiveram ao meu lado. Tenho uma rotina totalmente normal e ando de ônibus com o auxílio das pessoas que me conhecem. Hoje posso dizer que tenho autonomia, é claro que é uma autonomia solidária, pois dependo de outras pessoas e que elas também tenham boa fé".

Durante o bate-papo, Peres relata os momentos com empolgação, contando os seus relatos com muita determinação e orgulho. Como hobby, escuta todos os dias o rádio e fala de um dos seus méritos: passar em um concurso público para professores do Estado. "Consegui passar no concurso, mas as condições de trabalho, infelizmente, eram desfavoráveis para mim. Não havia estrutura".

Sobre a atual profissão, ele se sente muito feliz e fala dos planos para o futuro. "É um trabalho muito gratificante para mim. Tudo o que sai da gráfica, eu sou o responsável por revisar e apontar as alterações necessárias nos materiais, que são usados para o aprendizado de crianças em processo de adaptação. No futuro, pretendo ter filhos", acrescenta.

Sensações
Com a turbulência na metrópole, assim como Carlos define São José, um ‘cantinho’ na cidade chama a atenção dele para os momentos de descanso. Ele chegou a ir algumas vezes ao Parque Santos Dumont –localizado próximo da avenida Adhemar de Barros, uma das principais avenidas na região central-, e relata as sensações ao estar no espaço verde, um refúgio para o descanso.

“Não sou muito adepto às coisas bucólicas, mas o Santos Dumont é um espaço gostoso, em meio ao agito do município".

"Creio que o Parque Vicentina Aranha também transmita essa sensação, um lugar para relaxar e curtir com a família. Andando pelo Santos Dumont consegui sentir o frescor da presença das árvores, algo muito bom e que me faz bem”, relata.

Finalizando a conversa, próximo das 10h30, Carlos destaca sobre a importância da inclusão social. "Inclusão é uma questão de valores. Toda relação envolve muitas partes e a sociedade precisa se abrir para o novo. As pessoas têm receio de se aproximarem das minorias e isso necessita de mudança". Peres se despede e vai para área da cozinha fazer um 'lanchinho' da manhã. Afinal, ficamos alguns bons minutos conversando.

Reabilitação
Situado em São José, o Próvisão é referência e atende as 39 cidades da região do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira. A instituição recebe crianças recém-nascidas a até pessoas com mais idade, ensinando e socialização o deficiente visual, seja com baixa visão ou cegueira total. Um acompanhamento diferenciado é dado para crianças e jovens até o período da faculdade, com auxílio de materiais adaptados e aulas de reforço.

"Nossa existência se iniciou com as pessoas com deficiência visual. Há mais de 30 anos temos atividades voltadas para esse público. Temos a possibilidade de atender e fazer a reabilitação, para a escola, trabalho ou até mesmo na área esportiva", diz a superintendente, Meire Cristina Ghilarducci.                                       

Segundo ela, o Centro é uma nova porta que se abre para a pessoa que busca algum tipo de tratamento. Lá, é possível encontrar uma casa que simula as situações vividas, como escovar os dentes, fazer um lanche, tomar banho, entre outras. "Temos profissionais de fonoaudiologia e fisioterapia, que dão suporte para as crianças irem às aulas, acompanhando o processo de adaptação. Todas as pessoas com deficiência precisam de acompanhamento". 

Outro importante trabalho desenvolvido é a inclusão no mercado de trabalho. "Com 18 anos, o jovem pode ser encaminhado para o primeiro emprego. Inclusive, temos a própria gráfica, que conta com o programa de empregabilidade. Em outras situações, também damos suporte nos meses iniciais para o jovem se adaptar no novo ambiente".

Por mês, são atendidos 240 pacientes (105 mulheres e 135 homens) na unidade e a dificuldade financeira é a grande barreira. Por meio de convênio com o SUS (Sistema Único de Saúde), o Centro de Reabilitação Visual também realiza a concessão gratuita de bengalas, lupas, telelupas, próteses oculares e lente escleral pintada. "Infelizmente, o custo é elevado e pode variar entre R$ 320 e R$ 380, dependendo do tratamento. Temos convênio com o município com atendimento via SUS e cobre 40% dos nossos gastos. O restante nós dependemos de doação", afirma Meire.

Com a crise e a queda na receita, a direção do Próvisão está atendendo pacientes também por meio de consultas particulares. "Essa medida é para cobrir a defasagem que temos nas contas", acrescenta.

Raio-x
De acordo com a Secretaria de Promoção e Cidadania de São José, são 2.377 pessoas cegas e 14.651 pessoas com baixa visão. Deste cenário, 1.332 pessoas cegas são homens e 1.045 são mulheres. De baixa visão, 8.205 são homens e 6.446 são mulheres. Segundo a pasta, algumas políticas públicas foram implantadas na cidade, incluindo biblioteca acessível com acervos em braille, fonte ampliada, áudio-livros e filmes com áudio-descrição. Uma sala multimídia conta com recursos de estimulação para complementar a formação do aluno. Ainda segundo a secretaria, cursos de braille e de áudio-descrição são oferecidos, entre outras atividades. Leia mais reportagens na revista Metrópole Magazine.

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