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Filme elabora retrato afetivo de escola pública

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Os alunos são convidados pelo professor a olhar dentro de uma caixa sobre a mesa. Vão e, um a um, voltam a seus lugares com olhares ressabiados. "Cuidado para não se assustarem, podem se surpreender", brinca o docente.

No fundo da caixa tinha um espelho. A cena é uma das primeiras de "Atravessa a Vida", do cineasta João Jardim, que disputa neste domingo um dos prêmios do festival de documentários É Tudo Verdade.

O Brasil acumula pesquisas acadêmicas sobre educação pública. São mais raros, entretanto, trabalhos que, como este filme, buscam tanta intimidade com a vida na escola e com a juventude.

Jardim volta ao tema da educação 15 anos depois do sucesso de "Pro Dia Nascer Feliz", premiado documentário de 2005 que retrata estudantes e escolas pelo país.

A equipe acompanhou por três meses estudantes do 3º ano do ensino médio durante a preparação para o Enem, principal porta de acesso à universidade.

Por causa da pandemia, a edição de 2020 do exame será em janeiro de 2021, mês em que, aliás, o filme deve estrear --o lançamento original era previsto para abril último.

Foram cerca de 60 horas de filmagens somente na escola estadual Milton Dortas, na cidade sergipana de Simão Dias (a 100 km da capital Aracaju).

Quase todo o filme se passa dentro da escola, que, mesmo com mais mil alunos de famílias pobres, tem conseguido garantir acesso relevante ao sonhado ensino superior.

O diretor chegou à escola a partir de reportagem da Folha de S.Paulo do fim de 2017, que mostrou o trabalho realizado por lá.

Assim como em "Pro Dia Nascer Feliz", a discussão é profunda, investigativa e não está na boca de estudiosos. A condução vem da fala dos jovens; a maioria das cenas e diálogos está na aulas, atividades no pátio, nas conversas.

"Não é um filme jornalístico, mas afetivo", diz o diretor.

Há só três depoimentos formais em que jovens contam mais sobre suas vidas. Neles, surgem a pressão do vestibular, a escola como o caminho para uma vida melhor, a frequente ausência da figura do pai e o medo de decepcionar.

A câmera fechada nos estudantes e educadores leva o espectador a se sentir na escola. Assim ocorre em discussões sobre matemática, pena de morte, aborto, ditadura, ensinamentos da Bíblia ou mesmo sobre o suicídio entre jovens --cujo relato de uma aluna leva a professora às lágrimas.

Também estão ali as dificuldades com a falta de professores, o desafio do ensino noturno, as aulas em meio à obra pela qual a escola passava. O filme ainda retrata os alunos votando nas eleições de 2018.

Trabalhos documentais em escolas buscam, em geral, registrar e explicar práticas, além de contar a história dos alunos. Mas o filme de Jardim consegue mostrar jovens refletindo, construindo suas opiniões, e também divertindo-se, flertando e chorando.

Uma cena tocante mostra a diretora Daniela Silva ((hoje na secretaria de Educação do estado) a consolar, em seu ombro, uma aluna com problemas em casa.

Depois de chorar, a estudante agradece e, na sequência, passa a enxugar as lágrimas da emocionada educadora.

"Atravessa a Vida" apresenta uma escola desconhecida para a maioria das pessoas que não é estudante. Um espaço de resiliência, repleto de sonhos e desafios e, mais ainda, com uma juventude cheia de potência, como ressalta Jardim.

"O filme é muito sobre o jovem, sobre o adolescente, sobre esse movimento de 'atravessar a vida', e como a gente desperdiça toda aquela potência", diz o cineasta.

Jardim diz que, apesar de a educação ser um ambiente fértil para a dramaturgia, pouco se aproveita dela.

"Gosto de trabalhar com essa questão, é um momento importante e a gente entende muito pouco o que acontece dentro da escola", diz ele, que relaciona isso à visão sobre educação no país.

"O país não valoriza a educação porque não entende mesmo. Tenho vontade de mostrar para as pessoas a relevância do que está acontecendo."

Na aula em que os alunos olham para o espelho, o professor fala de Aristóteles, de futuro, pergunta a carreira dos sonhos dos alunos, e arremata: "Quando a gente olha para o espelho, o que a gente espera do espelho? Que não se quebre, né?".

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