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Pandemia aprofunda crise em serviços de aborto legal

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A pandemia de coronavírus agravou em 2020 a crise que os serviços de aborto legal vivem no Brasil em meio ao avanço de políticas conservadoras por parte do governo Jair Bolsonaro, dizem especialistas e profissionais de saúde.

"Eu não tenho dúvidas que este é o pior momento desde 1989, quando abrimos o primeiro serviço", diz o médico Cristião Rosas, que atuou no Hospital do Jabaquara, em São Paulo, pioneiro na interrupção legal da gravidez, e hoje é coordenador do Doctors For Choice, organização que defende o direito ao aborto.

Em levantamento da revista AzMina de junho passado, apenas 55% dos 76 locais de atendimento continuavam funcionando na pandemia. E esses hospitais já eram apenas 43% dos locais indicados pelo Ministério da Saúde --em 2019 o jornal Folha de S.Paulo mostrou que, de 176 unidades, 100 não faziam de fato o aborto legal.

O Pérola Byington, hospital de referência, chegou a suspender os serviços em março. Após repercussão negativa, foram retomados.

A manutenção da saúde reprodutiva na pandemia quase chegou a ser uma diretriz do Ministério da Saúde. Em junho, uma nota técnica da pasta recomendava que fosse assegurada a saúde da mulher, citando o aborto legal como um serviço essencial.

Bolsonaro publicou em rede social que estava buscando os responsáveis "de portaria apócrifa sobre aborto". Dois dias depois, a nota foi retirada do site do ministério e os servidores responsáveis por ela foram exonerados.

No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, risco para a mãe e anencefalia. No entanto, o presidente e outros membros do governo, como a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, não escondem o objetivo de acabar com a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez.

Em discurso na ONU em fevereiro, a ministra afirmou que o país continuava firme na defesa "da família e da vida a partir da concepção". No fim de outubro, o governo incluiu a previsão de "vida desde a concepção" em diretriz de desenvolvimento.

Para Rosas, é a primeira vez que há um "ativismo estatal" pelo fim do aborto legal. "Nem na época que começamos tivemos tanta dificuldade e tanto ativismo contra direitos reprodutivos vindo de gestores."

Antes da pandemia, os serviços sofriam com a omissão. Em 2019, o misoprostol, remédio usado na interrupção de gravidez em estágios iniciais, ficou em falta depois que o Ministério da Saúde atrasou em seis meses sua compra.

Aparentemente na contramão, dados mostram que os abortos aumentaram nos hospitais onde ainda são feitos. Na rede municipal de São Paulo, por exemplo, o número de interrupções subiu de 57 em 2019 para 85 em 2020, segundo a Secretaria da Saúde.

Mas não é possível afirmar que o crescimento signifique maior acesso, segundo a advogada Gabriela Rondon, do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).

"Com a pandemia, houve um aumento também da violência cometida dentro de casa, o que pode ser um dos fatores. Também é possível que, com o fechamento de serviços, o número de casos daqueles abertos cresça."

Ela afirma que profissionais de hospitais acompanhados pelo instituto têm relatado uma mudança no perfil das mulheres que chegam. "Elas são mais jovens e chegam com a gestações mais avançadas, o que denota uma dificuldade de acesso ao procedimento."

Profissionais de ao menos 44 serviços têm se reunido de maneira virtual mensalmente em busca de solucoes. Um dos caminhos apontados é o início do uso de telemedicina para acompanhar os procedimentos --a estimativa é que 80% dos casos sejam elegíveis.

Até as nove semanas de gravidez, há evidências científicas de que o aborto feito com medicamentos pode ser feito em casa com segurança, diz a obstetra Helena Paro.

A médica acompanha a primeira iniciativa do gênero no país, iniciada no meio da pandemia. "Com a crise sanitária, é uma opção interessante porque libera leitos que seriam ocupados sem necessidade e também diminui o risco de paciente e equipe serem infectados pelo vírus", afirma.

Hoje, as mulheres ficam internadas. Na modalidade remota, elas são recebidas para a avaliação presencial obrigatória e levam para casa o misoprostol, que também só pode ser obtido pessoalmente. A partir daí, são acompanhadas à distância e orientadas sobre sintomas esperados e quando buscar ajuda presencial.

Segundo a médica, apenas um serviço de saúde já implementou a modalidade, usando-a em cinco dos seis abortos legais feitos em 2021. Já há conversas com outros quatro hospitais para ampliar a rede.

Os especialistas ouvidos demonstraram preocupação com possíveis retaliações a médicos e serviço e, por isso, não serão identificados.

No ano passado, o médico que realizou o aborto na menina capixaba de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio foi chamado de assassino e alvo de sindicância por ter realizado o procedimento. Reportagem da Folha de S.Paulo revelou que Damares tentou impedir a realização do aborto. A ministra nega e diz ter ido prestar assistência à menina.

O caso motivou mais uma investida do governo Bolsonaro para restringir o aborto legal. A Saúde editou portaria obrigando os médicos a comunicarem à polícia casos motivados por estupro e a oferecer à mulher a possibilidade de visualizar o feto em ultrassonografia --o que, segundo especialistas, configura tortura psicológica.

A norma foi contestada e, às vésperas do julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal), a Saúde editou nova portaria, mantendo a obrigatoriedade de comunicação do estupro. Para especialistas, a medida visa desencorajar vítimas a buscarem apoio.

"A esfera criminal é importante para o combate à violência sexual, mas não pode ser obrigatória. Há casos em que a mulher não quer ou não pode denunciar", afirma Rondon.

A advogada diz que a quebra de sigilo médico configura crime, já a normativa não seria passível de punição. "Temos orientado os médicos de que eles estão mais seguros não informando do que o contrário", diz.

A norma continua sendo alvo de ação de inconstitucionalidade no STF.

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