FOLHAPRESS - "Aleluia! hoje eu passei/ por cinco carros da polícia/ & posso falar sobre isso", relata Danez Smith no poema "Todo Dia É um Funeral & um Milagre", que integra o livro "Não Digam Que Estamos Mortos", que, agora, chega ao Brasil.
O timing do lançamento aqui -três anos depois de ter críticas elogiosas nos Estados Unidos, em 2017, ser finalista do prestigiado National Book Award, na categoria poesia, e vencedor do Forward Prize, na categoria melhor coleção- talvez reposicione a atenção e o poder do livro e da corporeidade representada por That Bitch -aquela vadia-, como Smith se define.
De pele negra, transexual, sem gênero definido e hoje vivendo com HIV, Smith nasceu no estado americano de Minnesota, o mesmo lugar em que George Floyd foi assassinado pela brutalidade policial, em maio deste ano.
Foi nos cultos batistas de sua infância que identificou o casamento potente de mensagem e performance que viria a incorporar como ferramenta de trabalho. Ler sua obra é um jogo de êxtase e inquietude, de introspecção e fúria.
Smith parte de sua perspectiva íntima (é ao mesmo tempo corpo, pessoa), mas insere sua negritude no coletivo e a intersecciona com gênero, sexualidade e sorologia.
Sua prosa e poesia questiona a binaridade das formas. Confessional, seu texto se beneficia deste conturbado ano, em que vidas negras ceifadas, em decorrência do racismo estrutural, parecem ter causado horror à branquitude.
Seja Floyd ou Miguel ou Ágatha ou João Alberto. A audiência negra entende essa dor e grita junto. Aliada ou não, a branquitude se viu obrigada a não desviar os olhos e a pensar sobre esses corpos que se somam aos mortos e contaminados pelo novo coronavírus.
A saber se tudo isso vai durar mais que uma hashtag.
É aí que o livro dá um passo além. Documento desse exterior, que é a um só tempo trágico e corriqueiro, comunga com questionamentos existenciais e essenciais de Smith.
"Agora, o que fazer com o meu avesso/ interno, como exatamente/ vou sobreviver/ aos policinhas correndo em minhas veias, caçando/ glóbulos brancos &/ ratatatá / estou morto", segue That Bitch no mesmo poema que abre este texto. Polícia e Aids -a "bruxa rubra" como escreve- são igualmente algozes.
Mostra a voz lírica enfrentando (quase) displicentemente dilemas como a hipersexualização e objetificação do corpo negro LGBTQIA+. "Eu sento na cara de um cara que acabei de conhecer/ ele sussurra seu nome no chão da minha boca/ eu canto uma canção sobre estar só", narra em "Nota no App do Celular Que Diz a Que Distância Estou da Boca de Outros Homens".
A obra é uma travessia e a edição acerta ao contextualizar elementos culturais dos Estados Unidos. No elenco desta Flip, Smith tem carisma, talento e labor. Merece atenção e espaço, para além do olhar que o torna exótico.
"Quanto tempo/ é necessário/ pra uma história/ Tornar-se uma lenda?/ quanto tempo antes/ uma lenda/ torna-se/ um deus ou um esquecimento?/ vamos lamentar/ até esquecer o que estamos lamentando/ é disso o que se trata ser negro?", diz em "Não É uma Elegia". Esperemos que não.
NÃO DIGAM QUE ESTAMOS MORTOS
Autor Danez Smith
Editora Bazar do Tempo
Tradução André Capilé
Preço R$ 55 (224 págs.)
Avaliação Muito Bom
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