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Michel Laub aponta o dedo para artista, bolsonarista e isentão em livro brutal

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "É até engraçada essa história do Alexandre, o modelo que ele escolhe para contar. É um filme hollywoodiano", ironiza Raquel durante uma entrevista sobre o seu irmão. "Mas ele escolhe os fatos que quer usar, óbvio", diz. "Não fica mais fácil assim?"

"A minha irmã vai contar a versão que quiser", reclama Alexandre, ouvido no mesmo documentário fictício que estrutura o livro "Solução de Dois Estados". "É impossível ser razoável com uma pessoa que está ali para foder com a sua vida. Que acha que você fodeu a vida dela antes, sei lá como e por quê."

A rusga visceral entre os dois irmãos, cindidos em lados brutalmente opostos desde uma tragédia nos anos 1990 --culminando numa nova tragédia, no palco de um teatro, em 2018 - é o que move o novo romance de Michel Laub.

Quer dizer, ninguém ali se move para lugar nenhum. Raquel e Alexandre nunca saem um centímetro do lugar onde estavam fincados no começo do livro. "Eu não conseguia imaginar a chance de fazer um final conciliador", afirma o autor, "porque não consigo enxergar uma conciliação no Brasil que não seja meramente estratégica, eleitoral".

Não é muito difícil perceber que a oposição entre os dois irmãos espelha a divisão que racha o país hoje, algo que ultrapassa as fronteiras da ideologia. Simplificando um livro sofisticado, ali está o embate entre a cultura do individualismo pragmático versus o identitarismo encastelado.

Ela é uma artista de 130 quilos que lida com o bullying da adolescência fazendo vídeos de nudez explícita, incensados pela crítica. Ele é dono de um império de academias de ginástica na periferia, que se orgulha de ter erguido seu negócio do chão e se ressente por ter carregado a família nas costas enquanto a irmã estudava arte na Europa.

Não é a opinião política de Alexandre que irrita Raquel e vice-versa. É a própria existência de um que ultraja o outro.

Alexandre se refere à aparência da irmã com nojo e escarnece do seu ofício de artista - "o cara pode cagar num penico na porta do museu, mas não, a sensibilidade da expressão interior dele vai dar um nome valioso para a merda". Raquel apelida o irmão de miliciano e o acusa de calculista e de desonesto - "ele não tem como fazer autocrítica", diz ela, "porque autocrítica no caso dele seria negar a importância do dinheiro".

Ambos são figuras profundamente rancorosas. E não se conversam. O contato entre eles acontece pela mediação de uma documentarista alemã, Brenda, que os grava separadamente para um filme sobre a violência no Brasil.

A princípio, é como se a estrangeira fosse a voz da razão na disputa, alguém com o afastamento necessário para uma avaliação ponderada --ou isentona. Mas essa postura é posta em xeque ao longo do livro pelas personagens.

"Você acha que está mudando grandes coisas no mundo", afirma Raquel à cineasta. "Mas a plateia na Europa vai continuar igual depois de assistir ao seu filme. Eles vão jantar, dormir e sonhar com um mundo melhor porque afinal concordaram com duas horas do seu discursinho, os números sobre criminalidade no Brasil, a estatística da intolerância, é esse o objetivo?"

É tentador entender a figura da documentarista como um alter ego do autor, e Laub reconhece que isso era verdade quando o livro começou a ser escrito, em 2017. Mas essa relação foi se transformando.

"Esse confronto que eles têm com a Brenda é o que eu mesmo tenho com esse assunto", conta o escritor, falando sobre a possibilidade de fazer uma abordagem isenta sobre a ascensão do bolsonarismo.

"No começo, eu procurava mostrar que as coisas não são tão simples, que a tolerância demanda algum sacrifício, a compreensão de ideias com as quais não concordamos", afirma ele. "Essa visão foi sendo minada com o tempo."

"A eleição do Bolsonaro embaralha o conceito que se podia ter antes sobre a polarização, a necessidade de um ponto de vista de bom senso, de racionalidade. A Brenda passou a ser mais confrontada pelos irmãos do que eu previa."

A segunda metade da obra, por isso, vê a documentarista abandonar a postura outrora discreta e reagir, ela também, na ofensiva. Mas só depois de sua vida pessoal ser exposta de forma cruel por ambos os protagonistas, que querem provar que sua trajetória a impede fazer uma obra imparcial --afinal, é humana.

Alexandre, apesar de se filiar a uma direita inequivocamente rechaçada por Laub, é construído também de forma humana, com motivações e raciocínios consistentes. E a mesma complexidade vale para Raquel, que, mesmo com visões mais progressistas, também é um osso duro de roer.

"A Raquel pode ser uma pessoa intratável em vários aspectos, representa um identitarismo radical, obtuso, mas no final ela é a grande vítima", afirma o autor. "Eu não entrei num relativismo absoluto."

É como se o livro questionasse, o tempo todo, a sua própria capacidade de relatar com distanciamento aquelas diferentes versões de um Brasil polarizado --e não poupa do escrutínio todos os artistas, seus patrocinadores, os intelectuais, a imprensa e a "galera dos direitos humanos".

Daí a decisão de compor a obra como fragmentos do documentário não finalizado de Brenda, dividindo os capítulos em depoimentos brutos, trechos editados pela cineasta e material extra, como reportagens, documentos e a programação do evento interrompido pelo episódio brutal de violência que marca o enredo.

Na literatura de Laub, não há fácil conserto para um Brasil de fissuras tão profundas. O único facho de luz em meio a todo o negativismo do autor vem do próprio fazer artístico --apesar, ou mesmo por causa, de todas suas contradições.

"O otimismo que consegui ter foi lançar um livro acreditando que alguém vai estar interessado nisso", diz ele. "Acreditar na possibilidade de a arte ainda ser o espaço onde essas coisas podem ser discutidas de maneira não tão dogmática. O final feliz do livro talvez seja esse. Eu ter escrito."

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