SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Durou pouco o sentimento de superioridade moral dos africanos por causa do imbróglio na apuração da eleição americana.
O conflito na Etiópia mostra o exagero de comparar as excentricidades do sistema político dos EUA com uma crise de verdade num continente marcado pela instabilidade.
EUA e Etiópia têm por princípio constitucional o federalismo, mas os efeitos deste modelo sobre a própria existência dos dois países são muito diferentes.
No caso americano, a autonomia dos estados não ameaça a unidade do poder central, apesar de anacronismos que se manifestam de tempos em tempos, como a existência do colégio eleitoral. A força do poder regional é vista como um seguro contra a intrusão estatal nas liberdades individuais.
No caso etíope, as consequências são opostas. Governos regionais sentem-se em condições de desafiarem o Executivo central e ameaçarem com guerra civil ou separatismo. O componente étnico, como acontece em outras partes da África, é o que faz a diferença.
O moderno estado etíope é uma criação do final do século 19, no reino do imperador Menelik 2º, que unificou territórios pertencentes a diversos grupos tribais.
Desde então, sua unidade política foi mantida à base de uma camisa de força, primeiro por uma monarquia que perdurou até 1974 e depois por um regime comunista derrubado em 1991.
A democratização trouxe como resposta para as diferenças étnicas o federalismo, adotado numa Constituição aprovada em 1994.
Mas a nova autonomia conquistada ainda era bastante restrita na prática, pois no comando do país estava o autocrata Meles Zenawi, que morreu em 2012.
Como na Iugoslávia, que se desintegrou após a morte do Marechal Tito, o desaparecimento de Zenawi tornou mais respirável o ar político, mas liberou forças antes reprimidas.
Zenawi era da região do Tigré, uma espécie de Esparta etíope, profundamente nacionalista e com forte tradição bélica. Foram os tigrínios que lideraram a derrubada do regime comunista, e por isso sempre tiveram poder político proporcionalmente maior do que sua parcela de 6% da população.
A atual ameaça de guerra civil tem como pano de fundo a perda de poder relativo dessa minoria e um desejo de grupos mais numerosos, como oromos e amaras, de recuperarem terreno.
Membro da etnia omoro, a maior na colcha de retalhos etíope, o primeiro-ministro Abiy Ahmed foi saudado, ao assumir o cargo em 2018, por tentar privilegiar o sentimento nacional em detrimento das paixões regionais centrífugas.
Sua postura conciliatória e o empenho em encerrar a guerra iniciada nos anos 1990 com a vizinha Eritreia lhe renderam o prêmio Nobel da Paz no ano passado.
Desde então, Abiy vem sendo testado em sua linha política antitribalista, a começar por representantes de seu próprio grupo, que o acusam de traição.
Nada que se compare à gravidade do desafio vindo do Tigré, que não aceitou o adiamento da eleição regional decidido pelo governo central, usando a pandemia como justificativa.
O fato de a Etiópia possivelmente ser palco da primeira guerra causada pela Covid-19 é apenas mais um elemento cruel desta crise.
Abiy desta vez optou pela via militar, o que ameaça dar início a uma guerra no segundo país mais populoso da África e atrair vizinhos para o conflito.
Ele poderá em breve entrar na lista de embaraços para o comitê do Nobel da Paz, ao lado de Henry Kissinger, Iasser Arafat e Aung San Suu Kyi, entre outros.
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