O animal andando pelas ruas é tratado com desprezo pelos olhos reprovadores das pessoas bem-apessoadas. Para nós, humanos, a criatura não é necessariamente má, mas inoportuna. Ela acaba com a beleza das construções civilizatórias, já que é fétida, suja e vira-lata. Impregna o céu moderno com sua imundície animalesca. É por isso que a sociedade humana tentou, pelos mais diversos meios, acabar com essa raça, mas sem sucesso. E então fica pelas ruas.
O espécime mórbido não é um cão.
Meio dia e meia. As pessoas, bem vestidas e apressadas, limpas como o branco, nem conseguem mais fitar o desgraçado debaixo do sol. O animal está com a barriga roncando; são como os trovões a se contorcerem no céu em grande voracidade. Não é só a vontade de comer. É a dor da fome que ganha corpo. E aquele semblante retorcido é o rosto dessa dor.
O espécime mórbido não é um gato.
Ele se aproxima cada vez mais de seu nicho ecológico: o lixo urbano. Possui o trabalho de decompositor na sociedade humana, semelhante às arqueobactérias nos nossos esgotos. Sim, bem no fundo, o animal tem uma utilidade…
O espécime mórbido não é um rato.
A Seguridade Social, entretanto, está a postos, observando-o para rapidamente apanhá-lo e levá-lo a um de nossos zoológicos. Seu habitat são as periferias, o que levanta suspeitas. O que o levaria ao centro da legalidade e da democracia?
O espécime mórbido não é uma barata.
O animal encontra o latão de lixo. Com suas patas, grossas de pelos pardos, começa a revirar tudo. Essa mesma carapaça peluda tem maiores protuberâncias na cabeça, em tufos, o que lembra, talvez minimamente, o nosso cabelo. Ele apalpa alguma coisa. São os aminoácidos que ele necessita para a sua dieta.
O espécime mórbido não é uma ameba!
A criatura encontra um osso de três costelas, pobre de carnes, que nós, humanos, deixamos para ele se alimentar. À margem do mundo racional, industrial e humanista, ele devora o osso como se houvesse o que devorar. O cheiro é intragável, ao menos para nós, humanos. Já para o animal, talvez seja agradável: como urubus se enfeitiçam com o cheiro da carniça, a espécime em questão jamais recusa o odor do tutano de nossos açougues.
Mas, de repente... oh! Que interessante! A criatura chora… Estranho, só humanos choram. Que espécime interessante! Não fosse um animal que rasteja pela sarjeta, suporia um de nós. Mas não... É apenas um mendigo preto, animal das ruas.
Com supervisão de Yeda Vasconcelos, jornalista do Meon Jovem.
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