Por Meon Em Opinião

20 Ver

Para minha constituição tupiniquim –embora aqui e ali me acusem de indiano– o frio de julho é um insulto. Por extensas razões que, prometo, serão elucidadas posteriormente neste espaço. Mas as noites, admito, são bonitas naquela textura pálida meio granulada. Obra da névoa, da distância pro sol, ou, sei lá, dum filtro do Instagram celestial.

Sob uma dessas noites glaciais, lua redondíssima, chapada num céu sem estrelas, brilha, daqui do plano terrestre mesmo, mais precisamente do plano da avenida Andrômeda, o teimoso neon arroxeado do videokê cujo nome de trocadilho, por si, já é uma declaração de resistência à indumentária neo-cool-hipster da molecada slow foodiana joseense: ‘20 Ver’.

O estabelecimento reluzia como um prêmio aos que alcançassem aquela profundidade de madrugada. Não só numa prova de resistência, mas, digamos, de sensibilidade. Porta a dentro, uma realidade paralela, tipo uma viagem ao centro da Terra ou um refúgio pra dentro duma intocada ferida da urbe.

As condições normais de temperatura e pressão ficam do lado de fora. Na toca do coelho a atmosfera é outra. ‘Agora você vai ter que me aguentar’, diz estridente e balangandante uma amiga que resistia para entrar dois minutos antes. Ela desaparece e volta minutos depois, duas garrafas de cerveja numa mão, quatro copos na outra.

Comungamos a escuridão do local, curtindo, aos goles descuidados na cerveja, a conjunção melódica dos acordes eletrônicos do videokê com o coro de vozes entusiasmadas esganiçando microfones. Uma catarse cúmplice, um extravaso proletário naquele aguardado quinto dia útil do mês.

‘Vamos cantar’, a amiga surge novamente, com folhinhas de rascunho e um lápis na mão. O largo menu tem de tudo, menos Borbulhas de Amor, do Fagner. Logo o hino do videokê, que bola fora. Engulo a frustração na nova rodada de cerveja e escolho um Cazuza. Exagerado!

Ao melhor estilo gestão de horizontalidade, o videokê não tem palco não. Há telas espalhadas por todos os cantos da toca. No intervalo entre uma música e outra, uma elétrica funcionária se apressa entre as mesas para levar os dois microfones aos cantores da vez.

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Um videokê pode reservar muito mais aventuras do que julga a nossa vã filosofia

Pixabay

Os olhos amarelos da Vivi

Depois do Cazuza, uma rodada de Raul e, depois do Raul, veio a Vivi. Na verdade verdade, quem veio foi uma amiga da Vivi, a mais corajosa. Elogiou sem muita convicção nossa performance –dividi o microfone com o companheiro de mesa– e se aboletou na cadeira vazia.

Foi aí que veio a Vivi. Sentou-se do meu lado, olhos enormes, cabelos avermelhados enrolados em poesia, perfumados com aroma de xampu recente. Sorria a Vivi. Um sorriso que desabrochava leseira naquela atmosfera frenética.

Afundei minhas mãos nos seus cachos. Porque os cabelos cacheados escondem um prazer dado somente ao tato. Como aqueles sacos enormes de feijão, nos quais mergulhamos a mão quando criança para sentir o toque dos grãos.

Os cabelos da Vivi deslizavam entre meus dedos quando reparei que seus olhos eram amarelos. Foi preciso olhar bem de pertinho. Duas vezes. “Sim, são amarelos. Você reparou”, gastou-se num beijo agradecido. Dançamos e ela foi embora.

Saí com do bar matutando um versinho vagabundo para Vivi. ‘Pensei que viria para estender uma noitada. Mas descobri que 20 ver’.

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