Miller & Fried. Que dupla é essa? Ela está na base de fundação de um grande e maravilhoso edifício, hoje um tanto combalido, o futebol brasileiro.
Miller é de Charles Miller, paulistano de ascendência britânica, que foi estudar na terra dos seus avós e, lá, se apaixonou por certo jogo que conduzia a bola com os pés e tentava colocá-la na meta dos adversários. Gostou, jogou e ao retornar ao Brasil, trouxe uma bola e um livro de regras da modalidade.
Fried é Arthur Friedenreich, o nosso primeiro craque, o jogador diferenciado, que tinha artes no trato com a bola e foi um dos criadores do famoso "estilo brasileiro", hoje também em franca dissolução.
Miller & Fried - As Origens do País do Futebol é dirigido por Luiz Ferraz, que dribla com categoria seu principal adversário, a raridade de imagens dos dois personagens. Elas existem, mas são poucas.
Charles Miller viveu de 1874 a 1953. Foi estudar na Inglaterra aos 10 anos e voltou quando tinha 20. Promoveu o primeiro jogo organizado do futebol brasileiro. Uma espécie de ata de fundação, "assinada" dia 14 de abril de 1895, na Várzea do Carmo, em São Paulo, quando se enfrentaram os funcionários da Companhia de Gás da cidade e os da Companhia Ferroviária, empresas de origem inglesa.
Arthur Friedenreich viveu de 1892 a 1969 e se tornou o grande astro da fase amadora do futebol, que durou até 1933, quando houve a profissionalização. Fried vestiu a camisa de inúmeros clubes como o Germânia, o Ypiranga, o Mackenzie; depois passou pelo Flamengo, Santos e São Paulo. E, claro, pela seleção brasileira, através da qual se tornou ídolo nacional.
Para reconstituir essas histórias complementares, Ferraz toma os depoimentos dos biógrafos de ambos. John Mills, biógrafo de Charles Miller, e Luiz Carlos Duarte, de Arthur Friedenreich. Ambos dizem coisas interessantes e, de certa forma, desmentem certos mitos. Por exemplo, um dos recorrentes, que tem Friedenreich como filho de um alemão com uma lavadeira mulata. Errado: a mãe, Mathilde, era uma professora, formada na Escola Normal.
Ferraz conta também com os comentários de um trio afiado de cronistas esportivos - Paulo Vinicius Coelho, Marcelo Duarte e Celso Unzelte, que dialogam entre si e trazem informações adicionais às imagens de época. Estas, as imagens, são surpreendentes. E mais ainda por sua raridade. Por exemplo, cenas da vitória do Paulistano sobre a seleção da França por 7 a 2, em 1925. Friedenreich marcou dois, Araken Patuska três, e Feitiço mais dois. Após o jogo, um jornal francês chamou os brasileiros de "Les rois du football". Reis do futebol. Como se vê, a coisa vem de longe. Oswald de Andrade escreveu um enxuto poema sobre a excursão do Paulistano: "A Europa Curvou-se ante o Brasil: 7 a 2/ 3 a 1/ A injustiça de Cette/ 4 a 0/ 2 a 1/ 2 a 0/ 3 a 1/ E meia dúzia nos portugueses". Os 7 a 2 estão lá e a "injustiça de Cette" refere-se à única derrota do Paulistano, na cidade francesa que hoje se chama Sète, por coincidência.
O futebol teve rápida, fulminante e impressionante trajetória no Brasil. E isso o documentário refaz, tendo por eixos as biografias de Miller e Friedenreich. Trazido por Miller, o jogo logo é praticado com entusiasmo pela elite. Formam-se clubes e times. Neles, o povo não entra. É praticado pela elite e assistido pela elite. As imagens das plateias de terno e gravatas, e das senhoras com seus chapéus rococós, não deixam margem à dúvida. É a parte de cima da pirâmide social que pratica e assiste ao jogo da bola. Mas a parte "de baixo" não fica indiferente. Começa a praticá-lo, onde e como pode. O jogo é simples. Uma pelada pode ser organizada num campinho de terra batida, com uma bola de meia e traves improvisadas.
Logo o futebol se torna febre nacional, uma paixão popular. Ter sido mestiço o nosso primeiro grande craque não deixa de ser premonição do que viria a ser o país de Leônidas, Garrincha e Pelé. Por destacar a beleza desse longo processo esportivo e cultural, Miller & Fried só pode ser saudado como um golaço.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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