Alunos

Conto: A cachorra

Uma prostituta discorre sobre seu dia a dia e compartilha seus medos e suas percepções do mundo no qual foi aprisionada

Sara Tostes

Escrito por Sara Tostes

25 MAI 2022 - 09H22 (Atualizada em 25 MAI 2022 - 09H36)

Reprodução

Casei-me com a noite, mas nem por isso me tornei tão bela quanto a Lua; pelo contrário, me tornei tão desprezada quanto à estrela mais ignorada. Saio perambulando por aí, acanhada pelos cantos e encoberta pelo escuro. As ruas da grande cidade não são tão bonitas à noite, pelo menos não a parte a que pertenço. O lixo, os escombros, as comunidades… Todos os buracos onde ninguém quer se enfiar servem de abrigo para outros e outras, que, como eu, são deixados desde crianças para crescer e então apodrecer no mesmo lugar.

Eu trabalho nas Cerejeiras. Passo horas e horas em pé, andando de um lado para o outro ou parada nos semáforos, esperando a visita deles. Alguns são mais legais do que outros. São mais gentis, mais educados. Me tratam de uma maneira que faz parecer que sou gente também. Não é tão ruim com eles. Mas, existem outros que preciso me esforçar muito, cerrando os olhos e pensando no dinheiro. Engraçado que estes são justamente os que pagam melhor.

Os funcionários da farmácia me conhecem já. Eu frequento muito a drogaria, pois sempre preciso de medicamentos, remédios, certas pílulas, etc. Quem trabalha no turno da manhã é uma garota que não passa dos vinte anos e sempre me olha com pena. Ela talvez use os mesmos remédios, mas sabe que nossos fins são diferentes. De noite, quem me atende é um senhor. Eu não gosto dele. Ele também não gosta de mim, mesmo eu não tendo dado nenhum motivo para esse desprezo. Quando tem famílias na loja, ele me olha relutante e eu entendo que é bom esperar lá fora até que eles saiam. Fora isso, mais nada acontece. O senhor me vende, eu compro e saio.

Semana passada, enquanto voltava de um trabalho, me deparei com uma cachorra de rua. De pelo ralo, sardenta e com os olhos tristes cheios de remela. Ela estava muito magra e mancava em uma das pernas. Na boca, carregava os restos de um frango (e como aquilo fedia)… Bem, talvez fosse dela o cheiro. Me peguei olhando para ela e comecei a pensar se não seríamos iguais. Nós duas estávamos ali, largadas no meio dos pobres, dos brutos e dos azarados, engolindo em seco o medo e o orgulho para afugentar a fome.

Nós não somos iguais. Percebi isso quando a segui e então vi que os restos do frango eram para cinco cachorrinhos amarrotados em panos velhos. Ela fazia aquilo por eles. Eu não tinha ninguém dependente de mim, pelo menos não mais. Os únicos aos quais eu seria capaz de tudo não me querem desde que descobriram. Não espero nada de casa há muito tempo. Me fiz sozinha, desde muito nova, quando me disseram que lá eu não era mais bem-vinda.

Eu tenho muito medo. Muito medo mesmo. Não são só os vagabundos de bar, ou os que nos seguem nos becos que querem nos machucar. Os clientes também são perigosos. De vez em quando eles chegam alterados, mudados por alguma briga não resolvida, alguma angústia, e descontam na gente. Temo os olhares também. Eu sei que eles têm nojo de mim. Me repudiam, me esnobam e me assombram os sonhos de noite. Eu sinto eles me devorando e então vou ficando pequena, assim como os vermes que comiam as feridas da cachorra.

Quando amanhece, eu volto para o cortiço. Tomo banho, troco minhas roupas e rezo um terço. Tenho marcado os dias no calendário para o Carnaval, é o período mais movimentado. Os gringos lotam as ruas e pedem por nós, as suas damas. Eu penso nas pessoas do mundo, aquelas diferentes de mim, com famílias, saúde, opções… Acho que no fim todos nós somos iguais, pois afinal o mesmo Sol sempre paira sobre as nossas cabeças.

Com supervisão de Yeda Vasconcelos, jornalista do Meon Jovem. 




Escrito por
Sara Tostes
Sara Tostes

1ª ano do Ensino Médio - Colégio Embraer Juarez Wanderley - São José dos Campos

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