SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma das características mais marcantes da pandemia do coronavírus tem sido a desigualdade de seus impactos negativos sobre diferentes grupos populacionais.
O Brasil não é exceção à regra. Pelo contrário. No país, que já era estudo de caso internacional pela elevada disparidade de renda, a crise atual evidenciou outras dimensões, até então, menos debatidas da iniquidade socioeconômica.
É sobre esses aspectos que se debruça a primeira parte do livro "Legado de uma Pandemia: 26 vozes Conversam sobre os Aprendizados para Política Pública" (ed. Autografia), concebido por pesquisadores do Insper, da FGV, da Universidade Harvard e da Fiocruz, com apoio da Fundação Brava.
Cada um dos quatro capítulos iniciais, aos quais a reportagem teve acesso antecipado, discute uma das disparidades escancaradas pela crise sanitária.
"A desigualdade brasileira é tão grande que gera oportunidades para diferentes debates. Isso foi acentuado com a pandemia", afirma Laura Muller Machado, professora do Insper e organizadora do livro.
Daí o uso da palavra "legado" no título.
O economista Ricardo Paes de Barros, professor do Insper e coautor de Machado em um dos capítulos, explica que o objetivo não foi fazer uma autocrítica dos erros e acertos do Brasil, mas "olhar para a frente e ver o que aprendemos para fazer diferente no futuro".
Uma detalhada apresentação de dados e evidências, que nem sempre permearam o debate das ações e políticas implementadas no enfrentamento da pandemia, caracteriza os quatro primeiros capítulos.
Como ressaltam os economistas do Insper Sergio Firpo e Michael França, que também é colunista do jornal Folha de S.Paulo, o debate sobre como a cor da pele pode afetar a saúde é recente no Brasil.
Autores do primeiro capítulo, eles dizem que isso se deve, em parte, à inação em relação à coleta de estatísticas com recorte racial.
Os economistas mostram que não havia informação oficial sobre a cor da pele de 31% dos hospitalizados com Covid-19 cinco meses após o início da pandemia no país.
Apesar disso, a iniquidade racial ganhou maior visibilidade à medida que foram divulgados números como o que revelou que, entre negros e indígenas internados em decorrência do coronavírus, respectivamente, 41,3% e 45,7% morreram no período inicial da pandemia, ante 33,2% dos brancos na mesma situação.
Segundo os autores, isso tem fomentado o debate sobre as possíveis causas da maior letalidade entre certos grupos populacionais, jogando luz em problemas como o acesso precário a saneamento básico e o excessivo adensamento domiciliar entre as famílias de baixa renda.
No segundo capítulo, sobre educação, o economista Naercio Menezes Filho, também do Insper, elenca evidências e dados que embasam o prognóstico de que a pandemia tende a elevar a desigualdade educacional.
"Infelizmente, a situação aqui vai ser um desastre", disse o pesquisador à reportagem.
Condições de vida precárias fazem as crianças de famílias de baixa renda serem muito mais afetadas pela pandemia.
O fato de morarem em domicílios com número elevado de familiares por dormitório eleva, por exemplo, o risco de estresse tóxico na esteira do distanciamento social. Essa condição pode levar as crianças à hipervigilância e à exaustão, prejudicando o desenvolvimento das habilidades cognitivas e socioemocionais caso se estenda por muito tempo.
Menezes também destaca um tema que tem sido mais debatido que é o acesso desigual a atividades escolares e ao ensino de qualidade durante a pandemia.
Segundo o economista, as redes públicas que têm conseguido melhor desempenho com base em indicadores conhecidos -como a disponibilização de material pedagógico- são as que, normalmente, já se destacavam pela maior aprendizagem de seus alunos.
"As redes que estão conseguindo garantir o ensino são as que tinham melhor gestão por fazerem o básico, que é saber quem são seus alunos, onde moram, ter o contato de seus pais", afirma Menezes.
Apesar dos danos inevitáveis da pandemia, o economista diz que as decisões de política pública ainda podem garantir a recuperação de alguns prejuízos.
Mas algumas soluções que pareciam factíveis quando o livro foi escrito, em meados do ano passado, se tornaram inviáveis. A pandemia, afinal, tem sido mais dramática e longa do que muitos esperavam.
Embora a duração da crise tenha acarretado a desatualização de alguns pontos do livro dada a sua precocidade, a maioria dos diagnósticos levantados pelos autores continua útil justamente porque a pandemia parece longe do fim. Além disso, servem como lição para turbulências futuras.
Menezes ressalta, por exemplo, que as ferramentas de ensino a distância aprimoradas nos últimos meses ainda podem amparar a reposição de aulas e conteúdos perdidos.
No terceiro capítulo, Firpo e Bianca Tavolari, também professora do Insper, mostram que suposições feitas por senadores, no início da crise sanitária, sobre a situação de quem paga e recebe aluguel no Brasil não eram amparadas em evidências.
Um estudo dos dois especialistas revelou que a vasta maioria das famílias não tem gastos (83%) nem ganhos (95%) com aluguel no país.
Porém, entre aquelas que possuem essa despesa, 48,2% ganham, no máximo, três salários mínimos de renda mensal total. Esse percentual cai para 15,1% entre as famílias que recebem aluguel.
Essa discrepância -e outras reveladas pelos autores- reforça a importância de uma maior flexibilidade da legislação em relação, por exemplo, à possibilidade de suspensão de ações de despejo em momentos como o atual.
Os pesquisadores também defendem a criação de fundos que auxiliem os inquilinos a pagar seus aluguéis durante crises severas, especialmente nos casos de proprietários muito dependentes dessa fonte de renda.
O quarto capítulo -que encerra a primeira parte do livro- ressalta que os gastos públicos para reduzir os efeitos da crise e permitir algum afastamento social têm beneficiado, especialmente, os idosos, mais vulneráveis ao risco de morte pelo coronavírus.
Seus autores, Barros e Machado, dizem que a importância dessa proteção é indiscutível, mas chamam a atenção para uma questão pouco discutida no Brasil, que é a grande iniquidade entre a renda per capita de idosos e crianças.
Eles citam um estudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) que mostrou que, no país, o gasto público per capita destinado aos idosos é seis vezes maior do que o direcionado a crianças e jovens.
Uma das consequências dessa discrepância -que distancia o Brasil do contexto internacional--é que a pobreza entre crianças brasileiras é muito maior do que entre os idosos.
"A pandemia tende a piorar esse quadro. Esperamos que o capítulo contribua para que esse tema ganhe visibilidade e comece a ser debatido", afirma Machado.
Ela e Barros defendem que, embora esse seja um problema estrutural, de difícil solução, há caminhos que já poderiam ser considerados, como a cobrança de impostos adicionais de idosos com renda alta.
"É uma questão de solidariedade intergeracional, desses idosos com seus netos", afirma Barros.
Embora a persistência da pandemia imponha a necessidade de atualização de alguns pontos do livro a curto prazo, os diagnósticos apresentados pelos autores serão válidos enquanto os diversos aspectos das desigualdades, muito bem evidenciadas por eles, não forem atacados no país.
É importante ressaltar que o escopo dessa resenha se limita aos quatro primeiros capítulos -de um total de 17- do livro. O Insper fará quatro seminários virtuais, entre a segunda (1º) e a quinta-feira (4), para debater a obra.
LEGADO DE UMA PANDEMIA: 26 VOZES CONVERSAM SOBRE OS APRENDIZADOS PARA POLÍTICA PÚBLICA
QUEM Laura Muller Machado (org.)
EDITORA Autografia (342 págs.)
QUANTO R$ 50,90 (grátis no formato digital)
QUANDO lançamento na segunda-feira (1º)
Boleto
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