Ana Cecília Leal Machado, professora no Colégio Anglo Cassiano Ricardo, em São José dos Campos, deu uma entrevista ao Meon Jovem e contou sobre o projeto que está desenvolvendo, cujo tema é "O micromachismo". Confira.
Qual foi a sua motivação para escolher esse tema e desenvolver ele ao longo do ano?
Os professores propõem dois temas no início do ano. A partir desses temas, os grupos escolhem com qual professor eles querem trabalhar. Na realidade, inicialmente, eu propus “Segurança Feminina na Cidade”. A gente iria mapear quais eram as principais rotas que as meninas usam para ir para escola e pesquisar como garantir a segurança dessas meninas.
O objetivo final seria criar um aplicativo para as meninas da escola, mas logo no começo do desenvolvimento do projeto, nós vimos que esse tema não seria tão interessante como nós tínhamos pensado, então resolvemos reformular o tema. Como o meu grupo é predominantemente formado por meninas, nove dos onze integrantes são meninas, nós queríamos fazer um projeto relacionado ao feminismo e ao machismo.
Durante as nossas conversas, nós vimos que não adiantava muito tratar somente do feminismo, se a gente não olhar também para as manifestações do machismo e o papel do homem no combate a isso. Eu sugeri o micromachismo, uma vez que o machismo, num sentido mais amplo, já é mais estudado e discutido. Queríamos explorar essas questões mais sutis, do cotidiano, do machismo. O tema surgiu tanto dos meus gostos pessoais, quanto pelo interesse que as alunas demonstraram.
O que é o micromachismo, exatamente?
O micromachismo se manifesta em pequenas situações do dia a dia. Enquanto machismo em geral coloca o masculino como superior ao feminino: maior ocupação de espaço por homens, acreditar que mulheres devem ser limitadas a certas situações, etc, o micromachismo é menos intenso.
São ações e pensamentos tão sutis e leves que muitas pessoas nem reconhecem como machismo. Por exemplo: acreditar que a linguagem da mulher deveria ser diferente; a hipersexualização de uma mulher em uma campanha publicitária; uma cantada na rua; pensar que o caderno escolar da menina deveria ser mais organizado. Essas situações cotidianas é que são os micromachismos.
Qual era o objetivo do projeto?
O objetivo era encontrar como os pensamentos micromachistas de manifestam dentro do ambiente escolar. Queríamos saber também, se os pensamentos eram mais relacionados a sexualidade, comportamentos, etc.
Então nós decidimos fazer um questionário com algumas afirmações sobre comportamentos de meninas e meninos. Aqueles que respondessem que eram somente do sexo masculino, poderiam assinalar se concordavam ou discordavam com a afirmação.
Por exemplo, uma das frases era “Garotas são mais sensíveis que garotos”. O objetivo era encontrar em quais situações ainda estava presente um pensamento que colocava a mulher em uma posição de inferioridade ou onde existia uma distinção muito marcada a respeito desses comportamentos.
Os resultados desse questionário foram surpreendentes para você?
De certa forma, sim. Nós pensamos que mais pensamentos micromachistas, nas afirmações que tratavam de sexualidade, apareceriam, mas isso não foi o que encontramos. Por exemplo, na afirmação “Uma garota é mais ‘fácil’ de ficar com vários garotos na mesma noite”, nós esperávamos um índice de concordância maior do que realmente tivemos.
Além disso, na afirmação “Garotas devem falar menos palavrões do que garotos”, nós tivemos um índice de discordância de mais de 90%, ou seja, o pensamento de que a linguagem da mulher deveria ser de uma certa maneira, não está tão enraizada na mente dos alunos.
Porém, embora a maioria das afirmações foram respondidas de forma positiva, ainda tivemos porcentagens altas de respostas negativas, por exemplo, na afirmação “Não há problema em ficar com uma garota em uma festa se ela está bêbada”, 29% dos alunos concordaram, total ou parcialmente, com a afirmação.
Você acha que o pensamento micromachista pode servir como uma “porta de entrada” para o machismo em sua forma mais explícita e até violenta?
Eu não sei se eu diria “porta de entrada”. Eu acho que as duas coisas estão muito interligadas. A existência do micromachismo é intrínseca para a existência do machismo maior. Eu acho que o desconhecimento do micromachismo, pode normalizar algumas situações que podem ser incômodas para uma mulher.
Não adianta você acreditar que é um absurdo uma mulher ganhar menos que um homem, tendo todas as atribuições semelhantes, mas normalizar a objetificação da mulher nas propagandas. Então eu não acredito que uma sucede a outra, mas que são coisas que andam juntas.
Qual a sua opinião a respeito do influenciador que critica a postura de alguém que faz parte do movimento feminista, mas não necessariamente é um representante do movimento como um todo, criando assim uma má impressão do movimento como um todo para sua audiência?
Todo movimento social tem várias vertentes, uma mais acadêmica, uma mais prática, uma que priorizam um ponto ou outro. No feminismo é a mesma coisa.
Eu acho que qualquer influenciado que coloque em uma determinada voz, a representação do movimento como um todo, já está equivocado, porque ele faz uma apresentação homogênea de um movimento que, na realidade, é plural, porque afinal de contas as mulheres e suas necessidades são plurais.
Ele não está apresentando uma versão real do que é o feminismo, o ideal é que você tenha consciência que existem várias vozes e que você demonstre essas vozes para a sua audiência.
Eu acredito que, em qualquer debate sobre uma questão social, é necessário a presença das múltiplas opiniões. No caso do feminismo, não só precisamos da opinião das diversas vertentes do feminismo, mas também a opinião daqueles que não acreditam que seja um movimento relevante.
Na minha opinião, isso gera o crescimento das ideias. Não existe verdadeiro crescimento intelectual sem que haja a troca de ideias, por mais divergentes que elas sejam.
Evidentemente, não se pode desmerecer o outro como pessoa, não podemos ter uma postura agressiva com aquele que tem uma opinião que diverge da nossa. Quando o debate se torna impraticável, por causa de ações de qualquer um dos lados, surge a intolerância.
Você acha que a má representação é uma das maiores dificuldades sofridas pelo movimento feminista, ao tentar espalhar essa mensagem de igualdade?
Sim. Eu acho que é um entrave. Existem muitos canais de divulgação, utilizados pelas múltiplas vertentes do feminismo, mas muitas pessoas nem sequer sabem que essas vertentes existem. Eu mesma não conheço uma série delas.
Eu acho que tudo que fica polarizado - como se tivesse um conceito do que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode - quando estamos tratando de um movimento plural, é prejudicial para a troca de ideias. Então eu volto no que eu disse antes, é crucial ter as múltiplas vozes. Eu acho que qualquer radicalização, seja para um lado ou para o outro, é prejudicial.
Na sua opinião, quais são a maiores dificuldades sofridas pelo movimento feminista?
Eu acho que a abertura para o debate é algo que está faltando. Não se pode acusar alguém de machismo, sem demonstrar para ela porque esse pensamento ou essa atitude é machista. Mas eu acho que como muitas pessoas estão tão certas de que seu pensamentos estão corretos, elas desmerecem muitas vezes as verdades do outro. A troca é sempre importante.
A capacidade de se afirmar, de defender suas ideias, não pode passar pela agressividade. É claro que existem alguns momentos em que essa assertividade seja mais presente, por exemplo em grandes manifestações, circulação de imagens e depoimentos, etc. Essas coisas trazem muita visibilidade, mas eu acho que a gente tem que trabalhar com uma visão de 'formiguinha', nas coisas do dia a dia.
Foi aí que o trabalho desenvolveu para os lados da masculinidade. Eu acho que o debate com os homens é muito importante, para que eles não sejam excluídos do processo, por mais que seja uma questão que afeta muito mais a mulher, é importante que o homem revisite o seu papel. Ele deve se perguntar "O que é ser homem hoje?" e "Como esse homem se coloca como igual a mulher?" Estamos vendo movimentos que estão estudando qual é o lugar do homem nessa nova estruturação social onde a mulher não se aceita mais no papel inferiorizado.
Você acha que uma das razões pelas quais os homens hesitam em aderir ao movimento feminista, é o sentimento que eles não tem uma voz?
De certa forma, sim. É claro que as mulheres criaram o feminismo, a partir de uma perspectiva de validação de suas ambições e direitos, mas para mim, a participação do homem nessa análise, é muito importante, para que ele entenda o seu novo papel.
Eu acho que uma das coisas que mais incomodam as pessoas no feminismo é a sensação de que o feminismo é algo imposto, como se o homem tivesse que aceitar o que a mulher diz e pronto. Quando, para mim, o feminismo é uma construção conjunta.
O papel que o meu marido exerce e a maneira como ele enxerga o meu papel, como mulher, é muito importante para mim. É importante ele reconhecer o valor das minhas lutas, minhas vontades, meus desejos e se colocar junto comigo em um papel de parceria. O feminismo é um movimento das mulheres, sim, mas nós precisamos que os homens embarquem conosco.
É preciso que eles reconheçam que o feminismo não é uma luta para que a mulher seja colocada acima do homem, mas que ela seja igual a ele. Para que essa igualdade seja atingida, o homem tem um papel importante: não fazer uma piada machista, não concordar com colegas que reproduzam pensamentos machistas, perceber que as ações dele são importantes.
Você acha que existe alguma razão específica, pela qual a sociedade brasileira resiste em aceitar o feminismo?
Não sei se eu posso dizer uma razão específica. O movimento feminista é ainda muito recente, em termos de alcance na sociedade brasileira. Enquanto a discussão num contexto acadêmico seja mais antigo, ela chegou recentemente para o povo em geral.
Tudo que move estrutura, incomoda. Tudo que mexe com as coisas já estabelecidas, é esperado um incômodo, uma resistência, uma oposição. Então não sei dizer causas específicas, porque são um conjunto de causas que geram essa resistência. São muitos fatores sociais, políticos, econômicos, individuais.
Uma reformulação de ideias nunca é simples, ela sempre causa desconforto. A questão é como lidar com esses desconfortos e como dar continuidade, a partir desses desconfortos.
No seu projeto, você viu pessoas que, mesmo crescendo numa época onde o feminismo está senda altamente discutido, ainda tem pensamentos machistas. Na sua opinião, por que isso acontece?
Toda mudança é lenta, toda mudança é gradual. Eu acho que a influência da família, ou de outros microcosmos, que o jovem frequenta.
Eu acho que é muito difícil a gente se reconhecer numa determinada postura. Nem sempre nós conseguimos reconhecer nossos próprios preconceitos, ou nossas contradições de pensamento.
Então você pode ter um jovem que não se considera machista, pode até se considerar preocupado com as causas feministas, mas acaba reproduzindo um determinado comportamento que é derivado de ideias machistas. Nunca se terá uma juventude que, inteira, reformule seus pensamentos.
Você sempre terá núcleos que resistem mais às transformações e outros que produzem mais. Eu entendo sua pergunta no sentido que deveria parecer muito natural "Poxa, nessa altura do mundo, ainda existem pensamentos assim?", mas se a gente olhar para a história da humanidade, sempre foi assim, sempre existiram esses focos resistência para diversos pensamentos.
Com supervisão de Nicole Almeida.
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