BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) - Depois de ouvir um rumor por Uberlândia (MG), cidade onde mora, de que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) estaria ali no dia seguinte, João Reginaldo Silva Júnior, 24, pegou o celular em meio ao trabalho, na tarde de terça-feira (3), e publicou em seu perfil no Twitter: "Gente, Bolsonaro em Udia (Uberlândia) amanhã...Alguém fecha virar herói nacional?". E deixou o telefone de lado.
No fim da tarde, o alcance da publicação já era grande, com comentários de amigos que riram, alguém perguntando onde estava a notícia confirmando e outros de pessoas que ele não conhecia.
À noite, o comentário tinha chegado a cerca de 500 curtidas, um número muito além do que João costumava ter entre seus cerca de 150 seguidores.
Perto das 22h, a Polícia Militar de Minas Gerais bateu na porta de sua casa, dando voz de prisão a ele e avisando que ele teria que acompanhá-los à delegacia da Polícia Federal. Desde segunda-feira, o serviço de inteligência da PM monitorava as redes sociais da região devido à visita presidencial.
"Fiz uma publicação com base em uma fofoca, em tom de piada, nem sabia se o Bolsonaro viria mesmo à Uberlândia, porque não tinha nenhuma notícia confirmando a vinda dele", afirma João.
"Na minha cabeça, não seria preso por causa daquilo. Achava que estavam só averiguando a questão de segurança do presidente, e quando eu chegasse lá, e vissem que eu não represento nenhum tipo de perigo, que eu seria liberado. Fiquei surpreso por ter sido preso."
A Polícia Federal diz que ele foi preso com base nos artigos 22 e 23 da Lei de Segurança Nacional, por "fazer propaganda" e "incitar" a prática de crimes contra a integridade física e a vida do presidente da República.
Foi instaurado inquérito, e as investigações seguem para apurar sobre autores de outras publicações, que comentaram na de João.
A prisão dele foi incorreta e abriu precedentes perigosos, segundo professores de direito ouvidos pela reportagem.
À PF, segundo o auto da prisão em flagrante, ele disse que apagaria o tuíte se pudesse, afirmou que não conhecia as pessoas que comentaram em sua publicação com frases como "só preciso da arma" ou que "Bolsonaro só voltaria para casa em um caixão" ou ainda se não haveria um sniper na cidade, e disse que a intenção era de humor e que achava a prisão injusta. O único item apreendido foi seu celular.
Em seguida, o jovem que é formado em jornalismo e trabalha em um pet shop e com mídias sociais, foi encaminhado para exame de corpo de delito, em uma unidade de saúde onde andou descalço, depois que tiraram seu calçado, mesmo em meio a pandemia do novo coronavírus que abriu uma crise na região.
João passou a noite de quarta para quinta na triagem do sistema prisional, junto com outros três presos -um espaço pequeno, parecido com uma cela, com banco de azulejo, grades, sem cama ou banheiro.
Segundo ele, quando contava porque estava ali, os outros homens no local riam e diziam que ele seria solto logo. No começo da manhã de quinta, ele foi fotografado para os registros e levado para uma cela onde ficou até ser liberado, no fim da tarde.
Na decisão judicial da liberdade provisória, o juiz diz que "embora a materialidade e os indícios de autoria delitiva estejam presentes, não se encontram presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva" e cita uma reportagem dizendo que a visita de Bolsonaro já havia ocorrido e por isso não haveria motivo para mantê-lo preso.
O vazamento de dados pessoais dele fez com que pessoas passassem a ligar para a casa da família com ameaças e debochando da prisão.
A mãe dele, que desmaiou quando o filho foi preso, desligou o aparelho por tempo para evitar mais ligações.
Eles tiveram medo também de que alguém aparecesse pessoalmente na casa, já que o endereço constava nos documentos policiais que começaram a circular.
João bloqueou o acesso públicos às suas redes sociais para evitar mensagens no mesmo teor e maior repercussão, já que as pessoas seguiam comentando na publicação, mas abriu novamente o Twitter para divulgar uma nota de seus advogados, sua versão dos fatos e uma conta para quem pudesse ajudar a cobrir os custos legais que ele terá.
Na nota, os advogados dizem que o caso é "grave precedente que merece atenção", já que a publicação não passou de "mera alegação humorística (infeliz) de um jovem descontente com a conjuntura de governo do seu país, sentimento agravado pelas significativas crises de saúde, econômica e política do Brasil e como tal".
Um dos advogados, Márcio José Tricote Júnior diz que a defesa ainda não definiu uma linha a ser adotada e irá aguardar a denúncia contra João. "O que temos até agora é que, em momento algum, João teve o dolo, a vontade de atacar de qualquer maneira o presidente", afirma ele.
Apesar de receber mensagens com "fica esperto, vagabundo" ou debochando de sua prisão, João conta que também recebeu muito apoio nas redes sociais, pessoas dizendo que publicaram coisas até piores do que ele.
"Acho que por isso que eu recebi apoio e empatia das pessoas, porque elas viram que poderia ser com elas. Várias pessoas disseram isso, que poderia ser qualquer um", conta ele.
As maiores preocupações dele agora, diz, são a família e a sua liberdade, que só terá desfecho no fim do processo. "Acredito que a Justiça vai ser feita e não vou ser condenado por isso, mas eu gostaria de ter certeza", diz ele.
Sobre a publicação que desencadeou o caso, João, que não tem filiação a partido político ou movimentos, disse que se arrepende pela proporção que ela tomou, mas não pelo conteúdo.
"Pelas coisas que vem se desenrolando no atual governo, acredito que as pessoas não precisam ser filiadas a partido político para entender que não está bom. Não apoio nenhum partido, me considero um pouco de esquerda, mas como o presidente vem conduzindo a situação da pandemia é lamentável. Quando eu saí, eu vi que ele veio a Uberlândia e estava sem máscara. O sistema de saúde aqui colapsou, não tem leito de UTI para todo mundo", diz ele.
Uberlândia segue com taxa de 100% de ocupação, em leitos de UTI na rede municipal. Entre quinta e sexta, o boletim da prefeitura confirmou mais 20 mortes em decorrência do coronavírus na cidade.
A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la
A LEI
Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.
O QUE HÁ NELA
Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a "a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União".
Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social" e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.
EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE
O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava "se associando a um genocídio" na gestão da pandemia O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas. O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).
PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO
Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985).
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